Paisagens e Patrimónios
Paisagens Culturais e Paisagens Sonoras
9 de junho de 2025
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Lembrei-me, nesta crónica, de partilhar com os nossos leitores uma experiência recente que ocorreu numa iniciativa realizada no Parque Municipal Cabeço de Montachique, escutar o Coro Matinal das Aves. Provavelmente para os nossos leitores que vivem num ambiente mais rural será comum ouvirem os cantos e os chamados dos pássaros e, eventualmente, identificarem com facilidade algumas das espécies. No meu caso, como sou mais urbanita, a minha paisagem sonora está repleta de muitos outros sons, onde por vezes é até difícil auscultar as aves mais comuns.
Nessa manhã, com a ajuda do biólogo João Rodrigues, os participantes foram despertados para as sonoridades das várias aves que ao inicio do dia cantam simultaneamente como forma de marcar o seu território. No interior do parque, no meio do arvoredo, ativando o sentido da audição foi possível escutar algumas das aves presentes: o Verdilhão, o Chapim-carvoeiro, o Melro, a Toutinegra-de-barrete, o Chapim-azul, o Estorninho-preto, a Fuinha-dos-juncos, a Milheirinha-europeia, o Tendilhão, a Carriça, o Tordovela, o Pisco-de-peito-ruivo, o Pombo-torcaz entre outros! Ora bem, uma vez que se aproximam os dias soalheiros fica feito o desafio aos nossos leitores para se levantarem cedo e procuraram lugares arborizados ou mais rurais para fazerem as suas descobertas. Há uma aplicação gratuita que podem descarregar para o vosso telemóvel essencial para os iniciados nesta escuta, a Merlin Bird ID.
Importa destacar que o conceito de paisagem cultural se generalizou nas últimas décadas, tendo sido consagrado pela Unesco em 1992, que de um modo genérico definiu as paisagens culturais como as obras conjuntas do homem e da natureza que ilustram a evolução da sociedade e dos assentamentos humanos ao longo do tempo. A Unesco dividiu as paisagens culturais em três categorias principais: (i) a mais fácil de identificar é a paisagem intencionalmente concebida e criada pelo homem, englobando as paisagens de jardins e parques criadas por razões estéticas que estão muitas vezes associadas a construções ou conjuntos religiosos; (ii) a segunda categoria é a paisagem essencialmente evolutiva que resulta de uma exigência de origem social, económica, administrativa e/ou religiosa e atingiu a sua forma atual por associação e em resposta ao seu ambiente natural, refletindo esse processo evolutivo na sua forma e na sua composição; (iii) a última categoria compreende a paisagem cultural associativa e justifica-se pela força da associação a fenómenos religiosos, artísticos ou culturais do elemento natural, mais do que por sinais culturais materiais, que podem ser insignificantes ou mesmo inexistentes.
Ora, esta aceção de paisagens é propositadamente abrangente, porque na realidade no globo terrestes não haverá lugar onde a ação humana não tenha repercussões. Como afirma o arquiteto paisagista Alexandre Cancela d’Abreu num texto intitulado Paisagem e sua dimensão cultural, “Todas as paisagens em Portugal são paisagens culturais, na medida em que foram profundamente moldadas por sucessivas gerações ao longo de muitos séculos e são objeto de perceções diferenciadas pelos indivíduos e comunidades atuais.”
Enfatizo que ao utilizarmos a palavra “paisagem” estamos a usar um conceito convencional, moderno, mesmo ambíguo, que deriva de uma confusão entre dar forma a, trabalhar, moldar, como faziam os camponeses com a terra, numa vivência em que confundiam o seu corpo com os materiais e utensílios e, a visão distanciada do pintor, ou do proprietário, que olha de longe as suas propriedades e os que nelas por sua conta trabalham, numa atitude de contemplação. A consideração da paisagem como um objeto exterior de contemplação e fruição é hoje inevitável na sociedade de consumo de massas, mas não passaria pela cabeça de um trabalhador do campo tradicional, que nunca veria qualquer parcela da terra desse modo, como algo de exterior a si próprio.
Assim, uma paisagem é o resultado de um processo histórico e em parte cumulativo, e é vivenciada e incorporada por diferentes agentes (e até pelo mesmo agente) de modos diversos, pelo que ela é, acentuo, a todos os títulos, uma realidade diversificada, complexa e polissémica. Por outras palavras, nunca nada está “parado” numa paisagem, também temos de incluir nessa mutabilidade o próprio olhar e as sensações/intelecções dos que a percorrem, a utilizam e em geral a fruem. A paisagem é um “corpo em movimento” vista a partir de “corpos em movimento” – ambos, paisagem e corpos, em permanente interação e, portanto, em mutação.
Nas várias paisagens possíveis gostaria de chamar a tenção dos nossos leitores para o conceito de paisagens sonoras. Estas são “retratos sonoros” do local onde se inserem, contam narrativas do ambiente e dos seres que o povoam, sejam plantas ou animais. Mas, também podem contar histórias sobre outros elementos não vivos, como a frescura da água a correr sobre o leito de um rio, ou os sons provenientes do interior da terra, ou o som das ondas junto à beira-mar. Na verdade, as paisagens sonoras abrem-nos para um novo mundo de sons, ruídos e silêncios implicando outras atitudes de escuta. Podemos mesmo afirmar que a disposição para a escuta implica uma sensibilidade mais apurada, uma poética que de certo modo impele a ruturas no nosso quotidiano.
Um dos pioneiros a pensar sobre o conceito de paisagens sonoras foi o canadiano R. Murray Schafer (1933-2021), compositor e escritor prolífico, onde além da composição musical também se interessou pelo campo da ecologia acústica. Segundo ele a paisagem sonora abrange os sons que se podem ouvir num determinado contexto/ambiente, sons que podem ser naturais ou artificiais, sons esses que são nomeados de soundscape, neologismo criado por Schafer ao unir duas palavras sound e landscape, ou seja, som e paisagem. Assim, a paisagem sonora pode incluir qualquer campo de estudo acústico, sendo por isso muito abrangente, desde uma composição musical, a um programa de rádio, ou ao som do vento numa floresta. A paisagem sonora remete para a presença de sons ambientais em contextos reconhecíveis, e por isso tem a capacidade de invocar associações, memórias e a imaginação do ouvinte.
(continua na próxima crónica)