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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

Linhas de Torres e o Hospital Militar de Sacavém

5 de maio de 2025
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Continuando a crónica anterior, em 1810 existiu em Sacavém um hospital militar instalado provisoriamente numa fábrica de estamparia. Saliento que toda a atual região do concelho de Loures estava, na época em questão, preparada para defender a cidade de Lisboa da terceira invasão do exército napoleónico, comanda por Masséna. Todo um dispositivo articulado em rede pretendia assegurar não só o apoio às forças anglo-lusas posicionadas nas fortificações, mas também nos territórios mais próximos da capital.
Assim, como já abordei em crónicas anteriores sobre esta temática, além das fortificações de campo situadas mais a norte, nomeadamente nas freguesias de Bucelas, Fanhões e Lousa, todas as outras povoações localizadas junto à Várzea de Loures tinham também as suas forças militares devidamente organizadas, como Loures, Frielas, Unhos, Santo Antão do Tojal e São Julião do Tojal, bem como em Sacavém. Estes contingentes militares dispersos por estas povoações tinham como propósito principal garantir a segurança das forças militares posicionadas nas Linhas de Torres caso essas fossem forçados a recuar, ou seja, na circunstância do sistema defensivo não conseguir travar a investida dos homens de Masséna.
Para um contexto difícil como o de 1810, todo este território foi transformado numa paisagem militar. Para um bom funcionamento da logística essencial às manobras de qualquer exército, outras estruturas foram igualmente acauteladas, como por exemplo um posto ou armazém de abastecimentos em Montachique, ou um Hospital Militar provisório em Sacavém. Sacavém era um ponto estratégico importante, uma vez que estava em articulação com a Estrada Real que bordejava a margem do Tejo, aliás, caminho que foi usado por Junot na primeira invasão francesa em 1807.
Para a implementação do hospital militar foi necessário encontrar um edifício apropriado. Tomaram-se então diligências para que uma fábrica de estamparia fosse temporariamente desativada para nela instalar o referido hospital. Em 13 de outubro de 1810 o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Miguel Pereira Forjaz envia um ofício ao Intendente Geral da Polícia, Lucas de Seabra da Silva para que o mesmo desocupasse a Fábrica de Estamparia com urgência, por forma a acomodar alguns doentes do exército aliado ““O Principe Regente Nosso Senhor he servido que V. S. passe imediatamente ordem ao Ministro do Bairro competente, para fazer desocupar, sem demora, a fabrica de Estamparia de sacavem, onde se deve acomodar alguns doentes do nosso exercito. “. A urgência é explicada pelo avanço francês que implicou combates mais próximos de Lisboa e por conseguinte a necessidade de evacuar feridos e doentes para um hospital localizado na retaguarda. A dita fábrica foi desocupada a 15 de outubro, conforme atesta ofício do Intendente Geral da Polícia para o Conselho de Guerra, informando que em dois dias o assunto ficou resolvido: “Na data de hontem participou o Corregedor do bairro d’Alfama estar desembaraçada a prompta para acomodar doentes do nosso Exercito a Fabrica de Estamparia de Sacavém, que foi mandada desocupar em observância das reais Ordens que V. A. R. (…)”.
Porém, a instalação de um hospital militar em Sacavém acarretou um problema adicional, a igreja que até então tinha servido de cemitério tinha atingido o limite. O prior de Sacavém informou as autoridades que não podia enterrar os soldados falecidos no hospital, e que era urgente comprar um terreno, relativamente perto da igreja, para que o mesmo fosse sagrado e pudesse ser usado como cemitério. Assim, o Revendo Domingos Francisco de Trigoso, capelão na altura do Hospital Militar de Sacavém, corroborou a necessidade de comprar uma porção de terra onde fosse mais conveniente para o novo cemitério, remetendo para o efeito um requerimento que teve deferimento.
Mas, a população que vivia em Sacavém também tinha que de algum modo assegurar parte da logística inerente à presença forças militares. Uma forma, na época, de acomodar alguns destes homens era assegurar o seu “aboletamento”. Isto significava que alguns deles passavam a residir em casas particulares, sendo que nem sempre esta solução agradava aos respetivos proprietários. Por exemplo, em abril de 1810, João Crispim, vassalo britânico queixa-se aos oficiais de justiça do Distrito de Sacavém que não foram respeitados os privilégios que o excluíam da obrigação de dar aboletamento. A sua petição foi aceite, tendo sido ordenado pelo Príncipe Regente, o futuro rei D. João VI, a saída de sua casa de Sacavém dos oficiais e demais tropas do Exército Português aí aboletados, isentando-o da responsabilidade de aquartelamento para o futuro. Outra situação, é apresentada às autoridades competentes revindicando o retorno de umas casas. Com efeito, Josefa Maria, viúva e moradora em Sacavém solicitou em 1813, o pagamento de umas casas que lhe tinham sido tomadas para “boletos”. Importa, pois, salientar que o esforço de guerra pedido às populações civis durante as primeiras décadas do século XIX acarretou um grande impacto social e económico, tendo sido um período muito difícil não só para aqueles que viviam nos territórios onde os exércitos se confrontaram em batalhas, mas em todo o reino, com destaque para a zona de Lisboa e arredores assolada por uma vaga de migrantes fugidos da guerra.

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