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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

O bilhete postal ilustrado como fonte iconografia

5 de agosto de 2023
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A “moda” de se escolher os litorais como lugares aprazíveis de veraneio e a consequente prática dos “banhos de mar” é relativamente recente. Na realidade, na história europeia, só no século XVIII se começou a consolidar essa ideia e prática de passar os meses cálidos do ano junto ao mar, de começo por parte da classe superior, por exemplo em estâncias famosas, próprias da alta nobreza, como aquela que existiu em Brighton, na Inglaterra. Começou assim a encarar-se essas estâncias como tendo um valor terapêutico, inclusivamente aconselhado pelos médicos; e depois isso generalizou-se.
Claro que, com a revolução industrial e o desenvolvimento dos transportes de massa, ou seja, do comboio a vapor, as viagens tornaram-se mais acessíveis a outras classes sociais, amplificando comportamentos de imitação, associados a um certo prestígio, que primeiro atingiram a burguesia e depois, progressivamente, setores menos favorecidos da sociedade, até chegarem, mais tarde, ao próprio proletariado. Assim se generalizou um comportamento sazonal que se transformou numa atitude de massas, quando, originariamente, a orla costeira era sobretudo usada por pescadores, marinheiros, e, de um modo geral, conotada com o perigo do mar desconhecido e traiçoeiro e até, em épocas longínquas, povoado de lendas de monstros e de histórias de terror.
Ou seja, estamos aqui perante uma modificação espantosa na representação social deste interface terra-mar, desta área marginal: de zona a evitar, cheia de perigos, passou a ser uma área salubre, e até benéfica para a saúde, portanto dotada de poderes terapêuticos. Mais recentemente, tornou-se num autêntico ritual de verão em que as pessoas se deslocam massivamente, se estendem pelos areais, aí se colocam em estado de quase nudez, e fazem das praias todo um espetáculo e toda uma encenação associada ao olhar de uns/umas em relação aos de outros/outras: uma cena de voyeurismo, de exibição coletiva.
Evidentemente que, como é do conhecimento geral, houve sempre comunidades que, ao longo de séculos, e de milénios mesmo, viveram perto da costa, ou de algum modo estiveram com ela intrinsecamente ligadas, até porque se sabe que estes ambientes de confluência de ecossistemas se encontram entre aqueles que potencialmente são os mais ricos em matéria alimentar, nomeadamente se se tratar de estuários ou rias, de águas calmas, e onde é fácil explorar os recursos marinhos em complemento, se necessário, da agricultura. O mar, que ocupa uma grande parte da superfície terreste, foi sempre nesse sentido um elemento de atração, tanto mais que a sua proximidade torna o clima em geral mais ameno do que aquele que se experimenta nas zonas continentais, com grandes oscilações térmicas anuais. E dantes, quando era perigoso viajar por terra, era a deslocação fluvial e marítima a preferida, mesmo que isso implicasse perigos e, tantas vezes, acidentes e naufrágios. Basta ver, nas antigas igrejas, os quadros populares de ex-votos em que se agradece à Virgem a salvação daqueles que estiveram para perecer nas tempestades.
Desde tempos imemoriais, populações ribeirinhas souberam aproveitar os recursos que a orla marítima lhes oferecia, como se disse. A pesca, costeira ou mesmo no alto mar, é uma atividade muito antiga. A recolha de moluscos também. E tudo isso foi sendo absorvido por uma indústria pesqueira a par da qual se desenvolveu a indústria nova do turismo balnear.
O mar é um tema inesgotável, cheio de contrastes... provedor do que há de melhor - ou não tivesse a própria vida na terra nascido do mar, até colonizar os continentes, e, depois, através das aves, o próprio espaço aéreo – e de onde pode advir muito do que há de mais perigoso, as marés, os piratas, as súbitas mudanças de tempo, os próprios tsunamis que tudo arrastam à sua frente, etc.
Mas a geografia e de um modo geral as ciências da natureza foram, pouco a pouco, cartografando as terras e os mares, quer os mares interiores quer os grandes oceanos, e foram assim conseguindo, no quadro do racionalismo moderno, domesticando toda a superfície terrestre, fazendo conhecer as paragens mais longínquas, e ao mesmo tempo fazendo passar para as imaginações da literatura as ilhas abandonadas, lugares míticos de sonho e solidão. A beira-mar, próxima ou exótica, com as suas praias populares ou os seus resorts de luxo, tornou-se uma obsessão, associada ao hedonismo e à sociedade de consumo, à busca de evasão, de natureza e de prazer que incessantemente a publicidade vende às pessoas.
Claro que sobre tão grande transformação que se deu nos últimos séculos relativamente ao modo como as praias são representadas, valorizadas e fruídas, tinha de haver uma imensa literatura, como por exemplo o livro de Alain Corbin, que quem me lê poderá encontrar em tradução portuguesa, intitulado “O Território do Vazio. A Praia e o Imaginário Ocidental” (Companhia das Letras, 1989), ou, para as pessoas que dominem a língua inglesa, o clássico muito interessante de Rob Shields, cujo título em português seria “Lugares na Margem: Geografias Alternativas da Modernidade”, publicado pela Routlege (Londres), em 1992.
Assim, os litorais, entendidos durante muitos séculos como um limiar entre a terra firme, sinónimo de segurança, por oposição à imensidade da água, tumultuosa, foram domesticados e integrados na nossa sociedade do lazer entendido como um direito de todas as pessoas. Mas a experiência humana do mar é algo que não se esgota numa simples crónica sobre estas práticas modernas, tão ao nosso gosto. Nós, habitantes de Loures, onde o Trancão corre para o Tejo, estamos à beira de um dos mais belos estuários do mundo, onde a vista se espraia como se visse um mar. Na próxima crónica abordarei com maior pormenor os banhos no rio Tejo, que no século XVIII e XIX proporcionavam aos lisboetas o banho de mar.

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