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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

Da praia terapêutica à praia lúdica

1 de setembro de 2023
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Continuando o tema da crónica anterior, do passado mês de agosto, irei explorar um pouco mais a grande transformação que se verificou entre o século XIX e os inícios do século XX relativamente ao usufruto da orla marítima como um lugar de prazer. A praia, inicialmente entendida como terapia para maleitas físicas e “estados de alma”, passou a ser um espaço social lúdico, e, nos nossos dias, num dos muitos locais da sociedade de consumo. Estes modos de vivenciar a orla marítima e a praia só podem ser compreendidos quando integrados nas grandes transformações que ocorreram durante os séculos XVIII, XIX e XX. Ou seja, um período marcado por uma crescente industrialização e o fortalecimento de uma nova classe, a burguesia; e por uma racionalidade que procurou entender o mundo, incorporando nesses novos objetos de conhecimento tanto o que estava mais longe e macro (planetas, zoologia, botânica, as categorias taxonómicas de Lineu por exemplo), como o mais perto e quase invisível (os micróbios, descoberta possível com a invenção do microscópio).
Ora, voltando ao banho de mar como terapia, no século XVIII são várias as referencias alusivas aos banhos nas margens do rio Tejo pelos habitantes da cidade. Inicialmente usando as “barcas de banhos” ancoradas junto ao Terreiro do Paço, ou também usando pequenos botes e catraios, embarcações que levavam os utentes para o interior do estuário para aí se banharem em “águas correntes”, figuras caricaturadas por muitos estrangeiros que visitaram nessa época a cidade de Lisboa. Destaco sobre este tema o livro que podem os leitores consultar online, na Biblioteca Nacional, intitulado: “Sketches of Portuguese Life, manners, costume, and character: illustrated by twenty coloured plates”.
No século XIX e ainda nos inícios do XX a elite, nomeadamente a nobreza e a família real vão procurar os banhos de mar não recorrendo a barcas, mas procurando os litorais relativamente perto da cidade, como a praia de Xabregas ou de Belém. Posteriormente, outras praias cada vez mais distantes do centro da cidade foram sendo “descobertas” à medida que a malha urbana crescia, como por exemplo a praia da aldeia de Pedrouços, ou a praia de Algés, praias da moda, frequentadas por ilustres como Almeida Garrett. Na realidade, todas as praias da “linha de Cascais” passaram a ser procuradas, tendo contribuído para o efeito dois fatores essenciais: a linha férrea que facilitava o seu acesso, e o prestigio da família real e de outros notáveis que ao longo deste litoral foram edificando os seus palácios e casas de veraneio.
Porquê esta profunda alteração das elites relativamente à beira-mar? Com o iluminismo e o desenvolvimento do pensamento racional os litorais, até então muitas vezes considerados como territórios do vazio começaram a ser progressivamente incorporados no conhecimento. Até ao racionalismo os mares eram povoados por seres míticos, assustadores, narrativas na sua maioria associadas a passagens dos textos bíblicos. Ora, foi precisamente o desenvolvimento progressivo das ciências naturais que possibilitou a dessacralização destes territórios da “margem” ao serem incorporados no conhecimento e, simultaneamente, a capacidade de identificar propriedades benéficas para a saúde humana. Assim, as praias que até então eram sítios pouco povoados e a evitar devido aos perigos que representavam passaram, pelo contrário, a ter uma função terapêutica sendo recomendadas pelos médicos tanto no estrangeiro como em Portugal.
Esta nova visão secular da natureza e em particular da natureza marítima criou a figura do banhista que durante a sua estadia junto à beira-mar deveria encarar o que o rodeava como um “livro”. O conhecido escritor Ramalho Ortigão na sua obra denominada “As Praias de Portugal – Guia do Banhista e do Viajante” datada de 1876, escreve o seguinte: “(…) O desenvolvimento dos estudos naturais tem progressivamente modificado a opinião inculta, supersticiosa e aterrada de que o mar é o insondável abismo tenebroso (…) o maravilhoso aspecto da praia, na época das marés vivas, quando o Atlântico descobre uma parte do seu leio, é descrita pelo naturalista Blanchard como um maravilhoso campo de explorações.”. Assim, quando as elites sociais chegam à praia, este território da margem – ligação entre a terra e o mar - deixa de ser um espaço do vazio, do caos, para ser um local onde se inventa uma prática considerada na época como “civilizada”: fruir do litoral e do banho de mar.
Em Portugal, na transição entre o século XVIII e o XIX um grupo social está em plena ascensão, a burguesia, como já foi mencionado anteriormente. E a fruição da praia com fins terapêuticos estende-se também a este grupo que em sintonia com a teorias médicas que vigoravam na Europa, encarava a ida à praia como uma forma de curar o corpo e a alma. No século XIX, os banhos de mar por recomendação médica tinham como propósito educar o corpo, ou seja, corrigir as maleitas do corpo e da mente. O individuo deveria aprender a controlar os sentidos, organizar e regular as energias corporais pela estadia à beira-mar. Esta procura por um corpo saudável, energeticamente equilibrado surgia por oposição a um certo comportamento desregrado, lânguido e pouco responsável que a burguesia atribuía a alguns nobres.
Esta prática, o banho de mar, era considerada benéfica tanto para os homens como para as mulheres e crianças, pois visava favorecer a tal robustez física e moral. Mas, devido aos benefícios anteriormente mencionados, no período em questão, o banho de mar era não só especialmente recomendado para as crianças como prevenção, mas também indicado para corrigir distúrbios associados mais às mulheres, como a anemia e a histeria. O mesmo autor acima aludido, Ramalho Ortigão, recomendava às mães o seguinte: “Venho simplesmente pedir às mães que dêem banhos no mar aos seus filhos. Peço-o para a felicidade deles, para a sua regeneração física e moral, para a preservação das suas enfermidades, para a alegria do seu espírito, para a firmeza da sua vontade.”
Assim, a praia como terapia implicava duas técnicas diferentes e complementares: os “banhos de mar”, frios, e os “banhos de ar”. O banho de mar era algo que deveria acontecer de forma rápida e preferencialmente em água fria, por imersão súbita. O frequentador destes novos locais deveria proteger-se do sol, a pele deveria estar resguardada do sol. Assim, podemos salientar que a interação mais profunda e intensa era com o mar durante o banho. O restante tempo era destinado à contemplação da natureza marítima, da luz, do som, dos cheiros, do movimento… Por forma a apreciarem estes “novos litorais” onde o contacto com a natureza deveria ser um prazer à distância, surgiu a necessidade de edificar espaços próprios para o efeito, multiplicaram-se os passeios, os terraços e os miradouros marginais ao espaço da praia. Será preciso “esperar” pelo século XX para que esta, a praia, se torne num local lúdico, cada vez mais conotada com o prazer e o excesso.
Por conseguinte, nas primeiras décadas do século XX a praia lúdica permite um contacto mais intenso com o mar, a areia e o sol. A praia passa a estar conotada com “elementos quentes” por oposição à praia terapêutica e fria da centúria anterior. Isto significa, uma total reviravolta no modo social de fruir estes locais, agora procurados especialmente nos dias quentes, dias que convidam ao relaxamento, à diminuição da tensão e ao exaltamento da libido. Nesta nova “praia” assiste-se ao despir progressivo dos corpos ao longo dos anos, e no século XX o bronzeado transformou-se num símbolo de distinção social. Quem ostenta um corpo bronzeado é aquele que pode “não fazer nada”, aquele que pode estar deitado na areia junto ao mar… Cada vez mais a praia passou a estar integrada nos vários locais de consumo destinado às massas. Porém, quem tem poder económico viaja para locais especiais, resorts de luxo, ou mesmo ilhas ou sítios quase desertos… a maioria de nós procura uma praia onde possa estender uma toalha, esperando evitar um areal sobrelotado de corpos, chapéus, a horrível “animação musical” … Para os leitores mais interessados recomendo um livro de Helena Machado, editado em 1996, “A Construção social da praia”, onde a autora apresenta de um modo claro este tema. Bom, espero que o mês de setembro ainda consinta uns bons banhos de mar!

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