Anuncie connosco
Pub
Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

O movimento e a pluralidade da vida

6 de março de 2022
Partilhar

O próprio título geral desta série já longa de pequenos artigos que venho publicando aqui há anos pressupõe uma noção que é muito comum ao nosso pensamento de ocidentais modernos: ou seja, a ideia de natureza (mais associada à de paisagem) de algum modo contraposta à ideia de cultura (mais conotada com a de património).

Mas em boa verdade a noção de património foi-se estendendo com o tempo a todas as áreas da cultura e, também, a todas as facetas da própria natureza. Acabámos por perceber que tudo tem a ver com tudo, e que às vezes são os nossos conceitos, os conceitos que nós próprios inventámos, que acabam por nos enganar, por nos induzir em erro, por levar-nos a separar coisas que, na realidade, estão profundamente unidas.

Quando pensamos em paisagem, a primeira tendência é para a associar a uma imagem fixa, distante do observador, de um determinado território que avistamos, e que eventualmente gostamos de fixar numa fotografia. Por outro lado, quando pensamos em património, temos com frequência a atitude de o associar a um qualquer valor que herdámos do passado, por exemplo um monumento ou outro imóvel, o qual nos importa a todo o custo preservar, não deixar cair em ruína, e valorizar, dando-lhe até um uso contemporâneo, como pode ser o de constituir um objeto de interesse, atraindo visitantes.

Em suma, nós somos como aqueles meninos curiosos a quem dão um brinquedo e que acabam por o desfazer em peças separadas, como se tivessem vontade de conhecer o que está dentro dele... mas, depois, já não são capazes de voltar a juntar o que era a unidade do objeto completo, que acaba por se tornar num conjunto de destroços inúteis que terminam no lixo. Nós, seres humanos, somos seres do movimento, o movimento da vida, não fomos feitos para estar parados, e o mesmo acontece com a realidade, seja a realidade da paisagem, da natureza, do mundo que nos rodeia e que é dinâmico, interativo, seja a realidade patrimonial, que muitas vezes queremos estancar e pôr num museu ou fixar num livro, e que na realidade é uma coisa em permanente transformação. Assim, o típico, a tradição, a identidade dos lugares e das coisas que as pessoas fazem, como se fossem realidades muito antigas e perenes, são afinal de contas fantasias nossas. A realidade está sempre a mudar, e quando queremos fotografar, fixar, pôr num museu, a vida passa ao lado de tudo isso. A vida é movimento, movimento da atmosfera, movimento da água, do ar, do céu, das plantas que crescem e se modificam, dos animais, das comunidades, das pessoas e, também... das ideias delas. Nós é que queremos fugir ao tempo, que nos foge entre os dedos, fixando tradições, rituais e costumes, edifícios e configurações paisagísticas, como se tivéssemos um gigantesco spray de laca que mantivesse o mundo todo em suspenso, todo repetitivo. E porquê? Finalmente, porque temos medo da morte, não aceitando esta ideia básica de que a morte e a vida são as duas faces da mesma moeda.

Isso aplica-se à história. Imaginemos que alguém desejaria, hoje, em março de 2022, elaborar uma monografia histórica do concelho de Loures em que vivemos. Como dizia um autor, não há nada que mude mais do que o passado. De facto, cada pessoa que escreve a história, reescreve-a, porque além do mais cada momento que vivemos permite uma deslocação de perspetiva sobre o que pensamos que aconteceu, cada autor ou autora a seu modo. Assim, cada historiador(a), por mais neutro(a), objetivo(a) que quisesse ser, iria escrever uma história diferente, iria dar mais ou menos valor a um conjunto de factos que apoiassem a sua perspetiva: isso não é negativo, é a própria riqueza pluralista que faz a beleza e o interesse de uma história empenhada na verdade, sim, mas não numa Verdade definitiva, que só as tiranias defendem.

Tudo isto para dizer aos meus leitores que as paisagens e os patrimónios de Loures são sempre temas e lugares a revisitar, a ver com novos olhos, e sobretudo a encarar projetando-os para um futuro que sempre esperamos melhor. Um tema, portanto, inesgotável...

Última edição

Opinião