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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

a eletricidade em Loures

5 de junho de 2021
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A eletrificação de um território é uma das mudanças mais radicais que este pode experimentar, e ela é tanto maior quanto esse território, como é o caso de Loures, na periferia da capital, tenha tradicionalmente uma vocação rural. A eletricidade contribui para mudar a vida das pessoas e das famílias, permitindo tarefas noturnas que eram alheias à ancestral forma de vida campesina, modelada pela luz solar. Mas, também, a eletrificação dos espaços públicos é decisiva para a própria consolidação da urbanidade, nas localidades com maior aglomeração de pessoas. É uma revolução também mental e dos costumes. Não é só uma questão de segurança, permitindo o usufruto e policiamento noturno de espaços públicos; é a própria manifestação visível e permanente, dia e noite, de que esses espaços públicos existem, e se impõem na consciência das pessoas. Basta a iluminação de monumentos e edifícios públicos emblemáticos, como o de uma Câmara Municipal, por exemplo, para tudo mudar na fisionomia de uma cidade e no pensamento das pessoas.
Sabemos bem que antes da eletricidade existiram, desde tempos recuados – pelo menos desde a época romana – formas várias de iluminação, inclusivamente pública. Para tal usavam-se vários tipos de combustíveis, e, ainda no século XIX, os candeeiros a azeite e depois a gás eram muito importantes, e a sua propriedade e manutenção estavam, nas cidades, a cargo de potentes companhias. Natural é, pois, que tenha havido toda uma complexa história de fricções, lutas de interesses, entre essas formas mais arcaicas e a nova eletricidade, verdadeiro símbolo não só da racionalidade moderna (a ponto de muitas vezes figurarmos a noção de uma boa ideia através do desenho de uma lâmpada acesa) como de toda uma nova forma de representar o tempo e de organizar o trabalho e o lazer, já referidas.
O processo de eletrificação do território português teve o seu início no século XIX, com avanços e recuos, o que se traduziu nalgum atraso na concretização de uma rede pública de iluminação elétrica, à escala nacional. Os principais centros urbanos só foram eletrificados a partir da década de trinta do século XX, enquanto que, como sabemos, muitas zonas rurais tiveram que esperar pelo 25 de abril de 1974 para começarem a conseguir fruir desse fundamental benefício. Para além de se ter luz de noite, são os ritmos de vida e os hábitos de consumo, ligados até ao uso de aparelhos eletrodomésticos (incluindo rádio e TV), que mudam totalmente o estilo de vida e a difusão de ideologias.
Como se referiu, há muito que se utilizavam outras formas, mais arcaicas, de iluminação dos espaços urbanos, públicos e privados. Durante os finais do século XVIII e até meados do seguinte usaram-se candeeiros alimentados a azeite (na verdade, gorduras de vários tipos), que no caso de Lisboa começaram a ser substituídos pelo uso do gás. A iluminação a gás surgiu no Chiado, em 1848, e só desaparecerá da cidade nos inícios do século XX, sabendo-se que ainda em 1923 era utilizada para a iluminação de azinhagas e zonas periféricas da capital. Essa iluminação pública a azeite foi sendo substituída, como se disse, pela iluminação a gás, e esta progressivamente renovada pela inovadora eletricidade, hoje corrente. Todavia, a iluminação a gás perdurou em certas ruas de Lisboa, surpreendentemente, até 1965, data em que a eletricidade chegou finalmente ao Bairro Alto e ao Bairro de Santa Catarina, por exemplo.
A história da produção e distribuição de eletricidade foi um processo longo, relacionado com um conjunto de iniciativas ora públicas, ora privadas. Após uma experiência fugaz de Cascais por ocasião da presença ali da família real, em 1878, o interesse crescente pelo uso desta nova forma de energia levou ao aparecimento das primeiras empresas de produção e distribuição, uma das quais foi a designada “Companhias Reunidas Gás e Eletricidade” (CRGE), de 1891. Mais tarde, será a Central Tejo a entidade responsável por alimentar os concelhos à volta de Lisboa; será apenas na década de 1930 que se assiste à eletrificação progressiva, mas lenta, das principais dessas povoações.
O concelho de Loures acompanhou de um modo geral o processo que ocorreu no resto do país. Em abril de 1935, sob a presidência camarária de Dário Canas, é aberta a única proposta para a eletrificação do Concelho, por parte da Metalurgia Alentejana, de Beja, tendo sido adjudicada em maio seguinte. Cerca de um ano depois, a rede de distribuição de energia elétrica seria inaugurada em Loures, a 13 de setembro de 1936, numa cerimónia que contou com a presença do Presidente da República, Óscar Carmona, como nos relata O Jornal 4 de Outubro de 30 de setembro desse ano, num estilo bem típico dos tempos ditatoriais que se viviam, e em que todas as inovações e inaugurações eram aproveitadas para incensar o regime: “A cerimónia da inauguração do importantíssimo melhoramento foi uma das mais grandiosas festas concelhias a que temos assistido (…). A alma popular vibrou intensamente, com uma espontaneidade fácil de compreender, sabendo-se que viu, assim cumpridas promessas que ao povo eram feitas há largo tempo, e só agora logrou ver passar para o campo da realidade”. A rede foi-se depois estendendo pelo território concelhio, chegando por exemplo a Bucelas em outubro de 1936 e a Ponte de Lousa em fevereiro de 1937…

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