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Opinião
Alexandra Bordalo – Advogada
Alexandra Bordalo
Advogada

Das Notícias e do Direito

Jéssica, o choque e a espuma dos dias

3 de julho de 2022
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Generalizou-se a expressão que para criar uma criança é necessária uma aldeia.
A entreajuda, as experiências e a partilha de todos, auxiliam e promovem o crescimento integrado de uma criança.
O que dizer, o que sentir, o que pensar, quando as notícias nos mostram as fotos de uma pequenina de apenas três anos vilipendiada e maltratada até ao culminar da sua morte, em profundo sofrimento.
O que sentir, como reagir ante os agressores, a displicente mãe e uma comunidade que de um momento para o outro parece ter acordado, e acordou na Idade Média, pronta a fazer justiça pelas próprias mãos?
A banalização da violência e o sentir dos filhos como propriedade privada não é admissível em pleno século XXI, e a comunidade, a sociedade tem de o evidenciar e praticar.
Não podemos ter crianças, ou idosos, ou mulheres, a morrer sob intensa violência, porque outrora se dizia para se não pôr a colher. Ora, ora, assobiar para o lado não é admissível.
Temos todos de fazer mais e melhor.
E não podemos reservar o nosso choque e indignação ao sabor das notícias e do impacto mediático das mesmas, rapidamente arrumando condignamente tais sentimentos até à próxima onda de choque.
Por outro lado, que sociedade é esta que brutifica uma despedida, que a exibe despudorada nas televisões de modo alarve e que se sacia com cenas grotescas próprias de um coliseu romano, entre a turba expectante?
Muito há a fazer neste Portugal de tantos desníveis, e que carece da nossa atenção.
Uma mãe com dificuldades financeiras que vai à bruxa e fica a dever…retêm-lhe a filha como garantia (!!!) e a mãe vai assistir a um programa de TV, quando, finalmente, vai buscar a criança leva-a para casa, em vez de imediatamente para o hospital!
Junte-se a isto a CPCJ ter deixado de acompanhar e sinalizar…
Muito há a dizer sobre o funcionamento das instituições, as avaliações psicológicas que são feitas, as considerações e conclusões. Os meios, sempre os meios, poucas pessoas, por vezes despreparadas, grande volume de processos, enfim, a tempestade perfeita que subtraiu as hipóteses de sucesso na intervenção desta criança.
Certo é que, tudo falhou.
Falhou a dignidade, a existência de princípios e de racionalidade.
Falhou o respeito pela vida.
Falhou a consciência da inocência da criança, alheia às questões dos adultos, estranha a todas essas tristes confusões.
Falhou a sociedade que não perguntou, não inquiriu, não quis saber.
Falhamos todos e continuamos a falhar se nada fizermos para mudar.
Enquanto escorre sangue da televisão, viramos costas e seguimos as nossas vidas até à próxima notícia, da próxima vítima.
Impõe-se formar pessoas, cuidar que tenham princípios e acima de tudo, tenham consciência.
Consciência que não se bate, não se maltrata e não se matam crianças.
Dignidade e respeito pela vida precisam-se, e carecem de ser ensinados, aprendidos e apreendidos.
Que a morte destas crianças não se esfume na espuma dos dias, antes assombre o sono desta aldeia e desta sociedade falhada.
Descansem em paz estas almas torturadas.
A nós, que não nos falte a memória.

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