Anuncie connosco
Pub
Entrevistas

À mesa, “sem snobismo” Com o maestro

António Saiote no Zé do Barro

6 de novembro de 2020
Partilhar

O restaurante

O Restaurante-Café Maracujá é um dos estabelecimentos mais típicos e pitorescos de Loures.

Dito desta forma até poderá parecer estranho, talvez porque o verdadeiro nome do estabelecimento será, na verdade, aquele pelo qual é menos conhecido.

No entanto, se falarmos do “Zé do Barro” toda a gente o conhece.

Situado mesmo em frente da entrada da Escola da Polícia Judiciária, no Barro, esta afamada casa, representa para várias gerações de “filhos de Loures” um importante ponto de encontro e uma referência para os apreciadores de uma cozinha tipicamente saloia, com verdade e sem pretensiosismos, toda ela assente nos ingredientes típicos e no verdadeiro ambiente familiar ali tão bem retratado.

Foi neste espaço que me sentei à mesa com um “filho da terra” e indubitavelmente aquele que mais longe levou o nome de Loures a nível internacional, o Maestro António Saiote.

Com efeito, António Saiote percorreu o Mundo inteiro espalhando a sua arte no Clarinete, como intérprete, como Maestro, mas também como pedagogo, em mais de 30 países de 4 continentes, o que faz dele o mais conceituado clarinetista português e um dos mais respeitados especialistas deste instrumento a nível mundial.

A sua vasta carreira - que este ano assinala 50 anos – e na qual conviveu profissionalmente com os melhores do Mundo e de entre os quais se destaca, não o impede de conservar uma simplicidade contagiante que bem demonstra as suas qualidades enquanto ser humano.

É delicioso ver a forma como respeitosamente é tratado por todos, mas em particular por aqueles que, desde menino o conhecem e ainda hoje o tratam carinhosamente pelo mesmo nome.

Nome esse que soou, enquanto nos cumprimentávamos e retirávamos as máscaras ao chegar ao restaurante, irrompendo da boca do Zé, ao perguntar ao “Tóninho” - o que ia comer?

Da comida do “Zé do barro”

A Dª Carminda aguardava diligentemente a resposta para iniciar a preparação das nossas travessas.

É ela que orienta a cozinha e que desde aí coordena as operações. Mas quando há grelhados para fazer é o “Zé do Barro” que chega o lume ao carvão e “põe a carne - e o peixe - no assador”, enquanto a filha de ambos, a Elsa, trata do Balcão e do serviço de mesas.

E assim vem sendo há 45 anos, desde que o Zé deixou o seu ofício de Serralheiro, para com a sua mulher Carminda tomar conta do, então, café e mercearia (já “Maracujá”) onde investiram as suas poupanças para criar um novo projeto de vida.

É desta forma simples que esta família sabe tão bem receber à sua mesa, pessoas das mais diversas condições e que depressa se tornam amigos da casa, pela forma única como ali se come bem num ambiente descontraído, sempre abrilhantado pelo apurado sentido de humor do Zé. Foi com este à vontade, próprio de quem se sente “em casa”, que o Maestro optou pelo Polvo cozido, enquanto eu já há muito me havia decidido pelo Atum “de barrica”. Afinal, foi esta a minha escolha para este mês de novembro. O mês em que na zona saloia tradicionalmente se come esta especialidade, que tão bem liga com a (cada vez mais rara) água-pé e umas castanhas e nozes.

Este estabelecimento que encerra ao domingo para descanso, tem durante a semana alguns pratos típicos com bastante procura, desde bacalhau assado com batatas a murro, ao muito procurado pernil à sexta-feira.

Por encomenda também prepara um delicioso arroz de cabidela, e tem quase sempre iguarias únicas como as caras de bacalhau ou ainda, e nos tempos certos, apresenta também pratos tradicionais como o Atum de barrica.

Depois, é aqui que se come uma das maiores especialidades saloias, ainda confecionados à boa maneira antiga, e que para mim são há muitos anos os melhores “Charniqueiros” (queijadas de leite) que alguma vez comi.

Enquanto esperávamos o café, o Maestro confidencia-nos que a sua esposa não sabia o que eram charniqueiros, e em torno da comida continuámos com facilidade a conversa, e é aqui que connosco partilha, enquanto apreciador de boa comida, o seu prazer pela cozinha e que sempre que pode põe em prática, não apenas em casa, mas também cozinhando para os seus alunos.

Do Maestro

É vastíssimo o Curriculum do Maestro António Saiote e não caberia de forma alguma neste exercício de escrita.
Começa como solista na Orquestra Sinfónica Juvenil em 1973 e representou Portugal na Orquestra Mundial de Juventude e desde então não mais parou.
Obteve os mais elevados e prestigiantes graus académicos e atuou sempre nas melhores orquestras como solista convidado pelos quatro cantos do Mundo, designadamente, em importantes congressos e concursos internacionais.
Na sua carreira de Maestro, tem vindo a dirigir todas as orquestras nacionais e importantes orquestras na Europa e na América Latina, onde igualmente formou centenas de músicos.
Foi Júri de concursos internacionais e designado para inúmeros cargos de destaque tendo recebido galardões, entre outros, Membro de Honra da Associação Internacional de Clarinete.
É professor na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo do Porto, de cuja Orquestra Sinfónica também é diretor artístico e maestro titular, e colabora regularmente em projetos pedagógicos na América do Sul e na Ásia.
O seu percurso faz com que não seja fácil falar de António Saiote, na sua carreira, tamanha é a sua vastidão, mas é fácil falar com António Saiote.

Da conversa

Homem de discurso fácil e envolvente Humanista e "sem snobismos", como gosta de dizer.
E foi assim, sem snobismos, e como Homem simples que é, que sentados à mesa do Zé do Barro fomos deixando fluir o resto da conversa.

Dos 50 anos de carreira

A sua “estreia musical” ocorre mostrando os seus dotes vocais em 1966, com poucos anos “em cima de uma cadeira” a interpretar um tema de Roberto Carlos, a mandar tudo “para o Inferno”. O que recorda com carinho: “ … Havia um grupo muito importante em Loures, o grupo de teatro “os Arreliados”, do qual o seu pai fazia parte e que até aos anos 80 organizava espetáculos “as variedades”, para angariar fundos para os bombeiros. Nesse espetáculo, no Ringue de Loures, “o meu pai chamou-me várias vezes a atenção que o refrão deveria ser repetido 3 vezes”. Ora, quando foi repetida uma quarta vez “desatei a chorar em público, por me sentir enganado”.
Foi com apenas 10 anos de idade que, há 50 anos, saiu pela primeira vez com a Banda de Loures, para onde foi levado pela mão de seu avô, que havia sido fundador da Banda da Carris”.
Os tempos conturbados da Guerra Colonial, e o contacto com algumas pessoas com experiências traumáticas terão determinado estrategicamente a sua entrada para a Banda, para não ir à tropa.
Faz o solfejo e é-lhe distribuído o instrumento. Naquele tempo “os melhores iam para o clarinete”. Recorda que durante o primeiro ano “O meu pai obrigava-me a tocar duas vezes por dia, antes de almoço e antes de jantar, e a partir daí nunca mais ninguém precisou de me mandar tocar.”
Com 13 anos ingressa no conservatório 73/74, onde começou a ser disputado por todas as bandas militares. Sempre recusou porque “queria tocar numa orquestra”.
Conclui o Conservatório com 20 valores, e o júri diz “que não podiam dar menos que isso”!.
E a partir daí, -“A minha vida foi toda à custa de muita luta.” Afirma categoricamente.
Começa com 14 anos a tocar na Orquestra Sinfónica Juvenil, e “em 79 já andavam atrás de mim para ir para o São Carlos”, mas opta por completar a sua formação na Alemanha e na França, como bolseiro da Gulbenkian, história que muita vez conta aos seus alunos, – “decidi estudar mais dois anos e depois é que fui trabalhar”
Lamentando não ter ido para os Estados Unidos mais cedo, afirma que com a mentalidade que tem, ”com olhos para o Mundo”, se tem ido, já não saia de lá.
Conclui dizendo que “Portugal é muito pequeno. É um problema de mentalidade.
E a propósito dos inúmeros convites por todo o Mundo diz – “Vou a qualquer lado onde tenha oportunidade de mostrar as minhas capacidades”.

A visão do seu pai

É com saudade que inúmeras vezes faz referências ao seu pai, Oliveira Saiote, conhecida personalidade da Cidade de Loures e que muito deu ao Associativismo local, ao nível cultural, desportivo e como autarca.
Refere que tem “A educação do Príncipe e que o meu pai me deu” e que consiste em “estar bem em qualquer lado”. Foi ainda o grande responsável pelo seu regresso, colocando-lhe o «bichinho de fazer em Portugal uma escola de nível mundial.»

O Anti-snobismo

“O snobismo, é um dos maiores males deste País”
Dá como exemplo uma recente aparição do primeiro-ministro português ao lado da Presidente da Comissão Europeia na Fundação Champalimaud, e onde num púlpito aparecia “DR”. António Costa e no outro apenas Ursula von der Leyen.
E afirma “como costumo dizer Saloio sou eu e não faço isso!”
Em Portugal, “Quando alguém sobressai começa a ter problemas”.
«O nível de informação fui buscar lá fora e senti essa obrigação, de o transmitir cá.”
Afirma que um músico, tal como um cientista ou um investigador tem essa vantagem, “não dependemos de muita coisa e ainda por cima temos essa paixão … O Mundo pode estar a cair ao nosso lado… e nós estamos sempre a progredir ...”
Num mundo em que os pais pressionam as suas crianças e que já desde pequenas se acham estrelas, entende que “por vezes precisam de uma chapada sem mãos”
A música em Portugal

- “Nunca houve tantos e tão bons músicos em Portugal. Há gente com uma qualidade incrível”.
A música está como nunca esteve. A situação dos músicos essa nunca esteve tão mal como está agora…” e dá como exemplo o de um solista de gabarito que terá recentemente tocado um concerto por 800€, quando há 10 anos o mesmo concerto terá rendido 2500€, na mesma orquestra”.
Tudo quanto é ao mais alto nível andou para trás, e nesse aspeto um País não tem futuro” ao não apostar nos melhores”.
“E a crise não explica tudo, há um problema que sobra do 25 de Abril e que ainda não vi ser alterado e que é: continua-se a confundir Elite com Elitismo.”
“Em 73 o meu pai era cobrador de água e luz da câmara e eu podia estudar no melhor Liceu do País, bastava ter notas mais altas, hoje em dia, o ensino publico não tem nenhuma escola de elite. Para isso os filhos estão a estudar nas escolas privadas”.
Entende que há um problema de Autoridade e defende a participação Cívica, considerando que as pessoas não passarem pelo associativismo é mau, pois assim os valores e princípios não são ensinados.

A música em Loures

“Em Loures eu posso dizer que tenho feito bastante coisas. Não me posso queixar muito. A capital do clarinete, a capital da Cultura. Já pelo associativismo … as coisas estão adormecidas há muito tempo. É preciso tomar determinadas medidas.”
Afirma que “faz falta a Loures um projeto “internacionalizante”.
Loures não tem auditório, mas também não tem hotel … há muita coisa que falta em Loures
Fui mandatário desta Administração camarária com dois compromissos, um deles era um Auditório, e estou à espera das informações para saber em que ponto é que isso está … “
Considera que um dos problemas é que “em Loures se habituou a pensar: Lisboa tem, Lisboa tem …”
Na sociedade atual, acho que faz falta aquele tipo de “Campus” de férias onde houvesse música, poesia, arte em geral, literatura, história, dança, futebol, damas …” que pudesse receber jovens e considera o parque do Cabeço de Montachique como potencial espaço para tal.

Loures - Capital do Clarinete

Surge da vontade de homenagear Marcos Romão dos Reis, porque Loures nunca se apercebeu de quem era.
Para si, o Mestre que o recebia sempre já com o clarinete na mão, foi um exemplo de trabalho e perseverança. Refere que Marcos Romão do Reis era “filho de um barbeiro” e é um dos exemplos de elevador social, por mérito e qualidade excecional.
“Passando Badajoz para a frente, chamares-te António Saiote, seres filho de um cobrador de água e luz e seres de Loures não quer dizer nada, mas em Portugal ainda hoje quer dizer muita coisa e as pessoas não entendem o que é que isso quer dizer.”

A Academia de Clarinete

Nasce na Junta de Freguesia de Loures em 2006, primeiramente com a ideia de ser um concurso, mas achou que a melhor maneira de honrar o Maestro Marcos Romão dos Reis e sua a terra seria fazer uma Academia.
Faz uma comparação com o ciclismo, e pergunta quantos ciclistas de nível mundial tem A-dos-Francos? Aludindo a João Almeida e prossegue fazendo a mesma pergunta em relação a Torres Vedras – (Brejenjas) para se referir a Joaquim Agostinho. Tudo isto para rematar com a pergunta:
- “Qual é a terra que tem três “gajos” fora do normal ..? Seja em que área for …”
Referia-se a Marcos Romão dos Reis, a ele próprio, e a Jaime Carriço. Um jovem promissor de origem humilde e que aos 18 anos já estava na Orquestra do São Carlos e que só não chegou mais longe porque aos 25 anos morre vítima de cancro.
- “Até nisso nós somos Snobs. Cá em Loures não se fala no Jaime Carriço” – “Por isso é que a Orquestra se chama “Projeto Jaime Carriço” porque eu exigi “ - E aqui não consegue disfarçar a emoção quando a ele se refere, evidenciado o orgulho que sente por continuar a transmitir a todos no mundo do clarinete, desde o aluno mais novo ao mais virtuoso solista, quem foi Jaime Carriço.

Ensinar, a dirigir ou tocar - onde é que se sente mais realizado?

Responde que tem 3 filhos e que não gosta mais de nenhum em particular, mas que todos lhe proporcionam igual felicidade e provavelmente em momentos diferentes cada um,.
“Agora dizerem que têm saudades minhas na China, que isso me dá muito prazer, dá ...! Porque acham que eu sou fundamental para o desenvolvimento deles …”

O que é que é que falta à música em Portugal?

“Eu tenho um certo fascínio pela ideia do 5º império, do Bandarra, que o Padre António Vieira pegou nele também, o Fernando Pessoa, e aquela frase final que é “Falta cumprir Portugal”.
E o meu desafio para muitos projetos que eu apresento é sempre esse. Eu, louvando tudo o que é feito, acho que é sempre possível e é necessário fazer algo mais!”

CAFÉ RESTAURANTE MARACUJÁ - 07h00 às 19h00 (Encerra aos domingos)

Rua Francisco José Purificação Chaves nº11, Barro | 2670-546 Loures

Tel: 219 834 537

Última edição

Opinião