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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

Azenhas de Loures um património já raro

10 de abril de 2018
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O ser humano desde há muito que procurou pôr ao seu serviço as forças naturais por forma a ampliar e mesmo a substituir o seu esforço muscular na criação e manutenção de sistemas produtivos. Tal como acontece com o vento, há milénios que a humanidade utiliza a água – elemento crucial para a vida humana e, até, para o surgimento da civilização - como força motriz. Com efeito, desde a antiguidade que existem os mais diversos engenhos movidos a água, os quais permitiram ao longo de séculos moer grãos, irrigar arrozais, drenar terras alagadas, serrar madeira ou pedra, fabricar panos e papel, etc.

Como é bem-sabido, um moinho de água ou azenha é qualquer tipo de mecanismo capaz de aproveitar a energia cinética da movimentação das águas para fazer trabalhar um engenho de moagem. Assim, estes tipos de máquinas tradicionais foram contruídos, naturalmente, junto às linhas de água, nas margens dos rios, ou até no meio dos mesmos, para assim melhor aproveitarem a força da corrente. Há também outros que foram edificados com o propósito de utilizarem a força das marés, como é exemplo o Moinho de Maré de Corroios, no Seixal, que aqui destaco porque é um sítio musealizado e, por isso, passível de ser visitado pelo leitor desta crónica.

No território de Loures muitos rios ou ribeiros correm em vales encaixados, o que favorece o aumento da velocidade do escoamento das águas (sobretudo quando vão mais caudalosas), caraterística que ajuda ao aproveitamento hidráulico por parte das azenhas. O rio Trancão é disso exemplo, com várias azenhas que ainda há pouco laboravam. Mas noutros cursos de água também as há, como é o caso da ribeira de Lousa, ou até da ribeira do Boição, afluente do Trancão, ribeira esta que, junto a Bucelas, alimentava várias azenhas. Na verdade, existem muitas referências a engenhos movidos a água em documentação antiga do concelho, e atualmente ainda podemos vislumbrar na paisagem algumas destas unidades de produção, infelizmente na sua maioria em ruína devido a abandono.

Com o aparecimento das fábricas de moagem, os modos de produção tradicionais, como aqueles que as azenhas serviam, tornaram-se progressivamente obsoletos. Pouco a pouco estas pequenas unidades de exploração familiar entraram em declínio, e assim os sons da água a passar na levada, o do girar da roda, ou ainda do movimento ritmado das mós silenciaram-se. Sabemos que as enormes cheias de 1967 causaram grandes danos nas azenhas que então ainda laboravam, embora já com sérias dificuldades numa economia industrializada. Após esse desaire algumas ainda conseguiram retomar a sua atividade, mas, novas cheias na década de oitenta desse mesmo século, acabaram por provocar novas complicações, nomeadamente com a destruição de algumas estruturas, como os açudes e as levadas. Uma das raras que subsistiu foi a Azenha do Pão de Farrapo, da ribeira de Vila Nova, afluente do Trancão, que atualmente também se encontra fechada.

Frequentemente estas unidades tradicionais de produção familiar eram constituídas por um pequeno conjunto habitacional: a casa de habitação familiar, normalmente de dois pisos; a cozinha de fora e outras dependências de apoio à agricultura de subsistência e à atividade de moagem; e a azenha com açude e a levada. Exemplo desta unidade é a Azenha do Boição do Meio, localizada na freguesia de Bucelas, junto à ribeira que lhe dá o nome. Perto da azenha e respetiva habitação podemos ainda observar os vestígios de uma horta, de um pequeno pomar, de uma vinha, tudo parcelas agrícolas diminutas que, contudo, contribuíam para o sustento daquela modesta gente.

As azenhas eram explorações familiares, conforme já foi referido, ligadas a uma atividade transmitida de pais para filhos, como foi o caso do Sr. Augusto Machado, antigo proprietário da Azenha do Boição do Meio. Segundo ele, o seu avô comprou a azenha aos proprietários da Quinta do Boição de Cima, após anos de aluguer pela utilização do engenho. Tal como seu pai e seu avô, aprendeu a profissão desde pequeno, seguindo a tradição familiar, começando aos sete anos de idade. Os tempos eram duros. Trabalhar numa azenha implicava um trabalho árduo, não só no transporte dos sacos de grão e da farinha, na picagem das mós e sua substituição, mas também na manutenção e funcionamento do engenho, nomeadamente no inferno, zona submergida pela água. Trabalhar ali acarretava passar algumas horas dentro de água, não sendo, portanto, de estranhar que os moleiros sofressem frequentemente de reumatismo.

Os clientes da Azenha do Boição do Meio distribuíam-se por uma área ainda considerável, desde S. Tiago dos Velhos, Mourão, A-dos Velhos, até à freguesia de Calhandriz em Alverca. O transporte do grão e da farinha era assegurado pelos moleiros que iam buscar os grãos aos fregueses e depois entregar-lhes a farinha. O pagamento era muitas vezes feito em géneros, quer dizer, por cada saco de farinha o moleiro tirava uma “maquia”, um a dois quilos por saco. A deslocação era garantida por gado cavalar, burros e machos, que carregavam as taleigas em cima dos dorsos, cada animal transportando uns 200 quilos.

Na ribeira do Boição existiram várias azenhas que até meados do século XX faziam parte da economia local. Dos vários engenhos tradicionais que ainda persistem no concelho de Loures a Azenha do Boição do Meio será uma das mais significativas por conservar em relativo bom estado todo o conjunto e, também, por se inserir numa paisagem rural muito aprazível, perto de uma pequena cascata. Aqui está um inegável e raro conjunto patrimonial pré-industrial de muitos desconhecido, que tanto a sociedade civil como as autoridades públicas deviam salvaguardar e valorizar. Porque, na sua modéstia, é testemunho de uma atividade ancestral e, assim, cenário de muitas vivências que, hoje recordadas, são um modo de revalorizar o esforço humano e ignoto de pessoas sem nome.

PS – Ao terminar a crónica de hoje comunicam-me o triste e inesperado falecimento de Pedro Santos Pereira, diretor deste jornal, notícia chocante que muito me penaliza, apenas podendo por ora exprimir aqui à sua família os meus sentimentos de solidariedade nesta hora infeliz.

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