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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A Tanoaria de Bucelas

1 de outubro de 2022
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1ª Parte
Atualmente, uma das áreas mais ameaçadas ao nível patrimonial é indubitavelmente a dos saberes e ofícios tradicionais, transmitidos ao longo de gerações, muitas vezes no seio das famílias ou de pequenos grupos de mestres e aprendizes. Como todos sabemos, o que está em risco é a manutenção dessa continuidade. A modernização tecnológica em áreas como a agricultura, a pesca e mesmo a indústria, e em geral o contexto económico e social em que vivemos, tem vindo a acabar com todo um modo de vida e os saberes-fazer a ele associados, retirando aos ofícios e saberes tradicionais a necessária competitividade, e consequentemente desmotivando os mais jovens a enveredarem por esses domínios de atividade.
Aqueles que se preocupam com as questões do património - material ou imaterial, ambos aliás imbrincados sempre um no outro - afadigam-se, e bem, a fazer registos, na tentativa de preservar essa área do conhecimento humano, procurando simultaneamente promover estratégias que possam de algum modo travar o desaparecimento completo desses saberes, que correm o risco de terminarem em museus. É óbvio que a base desse trabalho é a da inventariação. Como qualquer trabalho de pesquisa, inventariar implica uma grande empatia com aquilo que se observa, regista e cartografa. É claro que é preciso entender em pormenor os processos e contextos tradicionais do fazer e do saber, percebendo ao mesmo tempo as razões e os modos que nuns casos levam ao seu desaparecimento e noutros tentam a sua articulação com novas técnicas ou mentalidades. Porque os saberes tradicionais nunca estiveram parados no tempo, fossilizados, mas têm uma história, eles próprios, que nós, citadinos modernos, por vezes, tendemos a colocar fora do tempo, como se fossem realidades estáticas, que sempre existiram. Todas as tradições estiveram sempre em constante reinvenção e adaptação.
Um dos ofícios “ancestrais” que ainda podemos encontrar no nosso concelho é o de tanoeiro. A necessidade de produzir vasilhame em madeira indispensável ao armazenamento e envelhecimento dos vinhos está presente no nosso país desde as suas origens. Ao nível documental destaco as Posturas decretadas pelo concelho de Lisboa que, nos séculos XIV, XV e XVI, já mencionavam o ofício de tanoeiro, e a existência de barris em madeira, os quais asseguravam o transporte, e, portanto, o comércio de vinhos, com Sevilha. Mas certamente o vinho produzido cá ia para muitos outros lugares.
Ora, o tanoeiro (ou toneleiro como também é por vezes denominado) é um artesão que se dedica ao fabrico de vasilhame em madeira, como já foi dito acima, ou seja, fabrica essencialmente barris, pipas ou tonéis, que servem para embalar, conservar e transportar mercadorias, principalmente líquidos. Estes recipientes podem ser feitos de várias espécies de madeira, como carvalho, castanho, mogno, acácio e mesmo eucalipto. Esta atividade artesanal, como se depreende do já dito, e aliás toda a gente sabe, está intimamente relacionada com a produção de vinho.
Em Loures subsiste apenas uma tanoaria localizada na vila de Bucelas e o seu responsável, um tanoeiro, o conhecido Zé Espiga. Fomos à conversa com ele para ficar a conhecer melhor o seu ofício e o seu trajeto como pessoa, o modo como vê o seu negócio e como perspetiva o futuro desse ofício.
O Zé Espiga herdou o apelido de “Espiga” do seu bisavó materno, em circunstâncias que explicaremos mais adiante, mas o seu nome de batismo é José Carlos Carvalho Quintão; pertence, portanto, à família Quintão, que vive em Bucelas há mais de cinco ou seis gerações. Zé Espiga nasceu em Lisboa, em dezembro de 1959, e desde criança que se familiarizou com a oficina de tanoaria que, nessa altura, era já o local de trabalho do pai. De tal forma cresceu nele o interesse e fascínio por todo o processo de trabalho, que, apesar de ainda pequeno, sabia já enumerar todas as fases da produção, bem como o conjunto das ferramentas utilizadas. E sabia explicar tudo isso a qualquer cliente que o questionasse.
O apelido de “Espiga” passou a fazer parte do nome do pai devido a circunstâncias pesarosas. A avó do nosso Zé Espiga ficou viúva muito cedo, pois o marido faleceu devido a uma septicémia, deixando a mulher com três crianças ainda muito novas. Alice Espiga regressou então à casa do pai e os filhos passaram também a ser conhecidos por “Espiga”, apelido que “herdaram” do avô materno, até hoje.
O avô materno do Zé Espiga trabalhou para os produtores da famosa família Camilo Alves, e foi mesmo caseiro da conhecida Quinta da Paciência. O pai do Zé Espiga manifestou a certa altura o desejo de aprender o ofício de tanoeiro na oficina daquela empresa. Começou como aprendiz aos 12 anos, em 1953, e ali permaneceu algum tempo nessa fase da sua vida, tendo também trabalhado posteriormente nalgumas tanoarias de Lisboa até vir instalar-se em Bucelas, empregado na pequena tanoaria que mais tarde viria a ser sua. Com efeito, comprou o negócio ao celebre ciclista Joaquim Manique em 1956.

Continua...

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