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Opinião de Joana Leitão

AMOR EM FORMA DE GATO

6 de outubro de 2019
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Quando há quase 12 anos mudava de casa em Lisboa nasceu a Lua, aquela que viria a ser a minha companheira de casa e de vida durante mais de uma década.

Era uma Ragdoll de pelo comprido, predominantemente branco, com metade da cara cinzenta e uns leves riscos cor de laranja, que faziam sobressair os seus enormes olhos azuis. De postura elegante e delicadeza acentuada, não tinha comportamentos de gato, não saltava nem arranhava e andava de uma forma lenta e apática. Descobri mais tarde que se devia à manipulação genética de que esta raça é alvo, que os transforma, os adapta a nós e lhes cria graves debilidades físicas e emocionais.

E era, por isso, frágil não deixando de ser curiosa e dependente, uma sombra que me acompanhava em “meia-lua” ou “lua inteira” por todos os cantos da casa. Três anos mais tarde juntar-se-ia a nós Yasmin, uma gata riscada com dois meses que trouxe da rua. Um animal que salta, que passou a arranhar os sofás, descomplicada, agradecida e que não dá dores de cabeça. E foi assim que me apercebi das diferenças abismais entre os gatos comprados e os adotados.

Apesar das preocupações, a Lua despertava em mim, de uma forma muito natural, a capacidade que tenho de contemplar a beleza e de me apaixonar. Acredito hoje que “amor” não é um sentimento de exclusividade humana, podendo resultar, também, da convivência com outros animais, uma vez que cuidar de alguém e partilhar o tempo e o espaço ao longo dos anos criam laços.

No entanto, como tudo que é demasiado perfeito não dura muito tempo, há cinco anos atrás, a Lua começou a emagrecer, sem que se detetasse a causa. Recuperava depois das idas ao veterinário e no ano seguinte voltava a incerteza. Só no passado dia 17 de setembro, e depois de exaustivos exames ao longo dos anos, se detetou insuficiência renal, tão comum em gatos, principalmente nestes que já têm uma maior propensão genética, e uma anemia grave, o que a levou a um dia inteiro de internamento.

Estava agora, mais do que nunca, pele e osso. Sem apetite, apática, com uma maior dificuldade de locomoção e um distanciamento notório. Desta vez era diferente. O rins não podiam recuperar-se e a solução era a manutenção do internamento, para que vivesse mais uns dias ou, com pouca probabilidade, meses. Só que conhecia bem a Lua e a sua personalidade. O internamento onde não a deixei passar a noite tinha-lhe tirado a réstia de energia. Tinha-a envelhecido. Não podia fazer mais nada que não fosse deixá-la ir, sem ter que a sujeitar ao último sopro, em sofrimento. E esse, seria o meu último gesto de amor. Mantê-la cá porque não conseguia despedir-me seria cruel.

Assim, passamos a noite inteira acordadas. Com toda a dureza que tal acarreta e, com os olhos cheios de lágrimas, no dia seguinte entrei na sala do veterinário e deixei-a ir. Depois disso, percorri 300 quilómetros para a deixar em lugar seguro, de família, no jardim, bem perto das rosas e dos pássaros. Agora a nossa casa, onde nunca vivi sem ela, parece vazia e está assustadoramente silenciosa. Perdeu luz.

Mais uma vez. Não creio que o ser humano tenha inventado uma linguagem suficientemente capaz de exprimir tudo o que vivemos e tudo o que sentimos, pelo que me sinto aquém das palavras, num relato que me parecerá, como já fiz outros, tão insuficiente. E, por isso, só me resta agradecer-lhe.

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