Entrevista dada pelo fotógrafo ao Notícias de Loures em Junho de 2016
especial eduardo gageiro
9 de junho de 2025
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Infância
Eduardo Gageiro não esconde as raízes e faz questão de honrar o local onde nasceu «tive a sorte de ter nascido em Sacavém, se não tives¬se nascido em Sacavém era uma pessoa completamente diferente». A infância foi vivida perto dos operários da Fábrica de Loiça, que frequentavam o estabelecimento do seu pai, uma Casa de Pasto, como o próprio define. As dificuldades eram muitas, muitos dos traba¬lhadores andavam descalços e era a mãe de Eduardo Gageiro que lhes aquecia as marmitas no seu forno de lenha. A visão era de miséria e não havia outra, mas aos 10 anos tudo se alterou. Já deitado ouviu muito barulho, levantou-se e foi ver o que se passava no estabe¬lecimento e eis que depara com um mundo novo, homens e mulheres bem vestidos e bonitos. Assim que o pai se apercebeu da sua presença ordenou que se fosse deitar. Mas a curiosidade manteve-se e questionou, no dia seguinte, o pai sobre quem era aque¬la gente. Eram pessoas que vinham do Casino e do Parque Mayer, que tornavam a Casa de Pasto, do seu progenitor, bipolar, com dois tipos de clientela totalmente díspares, os da hora de almoço e os da madrugada. Esta desigualda¬de chocou-o levando-o a pen¬sar «que mundo era este com uma desigualdade tão gran¬de». Estávamos em 1945.
Entretanto fez a quarta classe e pretendia continuar os estu¬dos, pois era um amante da leitura e, por conseguinte, do conhecimento. O Liceu era um objectivo mas o pai assim não anuiu, pois o futuro dele seria na Fábrica de Loiça, onde iria ser empregado de escritório. Apesar de não ser o seu desejo, não teve como contrariar o pai e aos 12 anos passava a ser paquete naquela empresa. Distribuía papéis de secção em secção e demorava muito mais que o necessário, pois perdia-se sucessivamente em conversas com outros operá¬rios e artistas.
O começo da Fotografia
Foi neste ambiente que a foto¬grafia começou a surgir, pois usava uma pequena máquina fotográfica do irmão e mostrava os resultados aos seus colegas de conversa, que achavam graça à sua vivacidade, que se traduzia também numa enorme curiosida¬de, querendo sempre saber tudo. Começou a receber alguns elo¬gios e eis que surge uma pessoa determinante no seu desenvolvi¬mento como fotógrafo, Armando Mesquita.
Depois de ver fotos suas, Armando Mesquita ordenou-lhe que passasse no seu atelier, pois precisava de aulas de arte e composição, algo do qual não percebia nada. Bem-mandado e ávido de conhecimento acedeu, começando a ter aulas. Começou a pedir máquinas fotográficas emprestadas e as películas cada vez eram melhores. Foi aí que pressionaram o seu pai para lhe comprar uma máquina em con¬dições.
Entretanto, começou a contactar com alguns jovens mais velhos, que frequentavam a universidade, alguns conotados politica¬mente, que devido à curiosidade de Eduardo Gageiro o acolheram e lhe iam oferecendo livros. Esta vontade de saber levou-o a ler centenas deles, desde os clássi¬cos portugueses e estrangeiros aos de origem ideológica. Foi um novo mundo que se abriu, com destaque para a injustiça social, que intrinsecamente lhe criou um desejo de ser jornalista, para que, desta forma, a pudesse combater e denunciar.
O jornalismo
Foi então que Mário Ventura, fiscal da Companhia das Águas, pai do amigo Ventura Henriques e vizinho da frente, organizou em sua casa um jantar com directores de jornais e redacto¬res, para o qual o convidou. Foi aí que conheceu o director do Diário Ilustrado, Jorge Sampaio Rodrigues, irmão do Urbano Rodrigues, que lhe disse para no dia seguinte aparecer na redac¬ção do Jornal e levar umas fotografias. Obviamente que foi, o que lhe causou problemas, pois o pai não estava de acordo, tendo mesmo de morar em casa de uma tia durante uns tempos.
Chegado à Redacção ficou des¬lumbrado, estando com a sua máquina pronto a trabalhar, enquanto aguardava com expec¬tativa. Eis quando surge um fotó¬grafo que lhe pergunta quem é e o que está ali a fazer, num tom agressivo. Perante os esclare¬cimentos dados, que estava ali para fazer fotografias, foi-lhe des¬tinado ir para o laboratório fazer as fotografias da pessoa em causa. Foi aí que notou que havia alguns atrasos, desde a maneira como utilizavam o flash, até à forma como revelavam as foto¬grafias que, na sua opinião, eram desinteressantes e que se resumiam a conferências de impren¬sa e à cobertura de alguns eventos. A desilusão assolou Eduardo Gageiro, que pensou em desistir e só o apoio dado pelos funcionários da parte gráfica, com quem tinha contacto, o foi man-tendo. Foi assim durante quase um ano, até que certo dia lhe ligam para se dirigir à Redacção, que ficava noutro edifício e levar a máquina fotográfica. Devido à falta de fotógrafos disponíveis, naquele momento, foi encarregue de ir fotografar o Ferreira de Castro para um suplemento literário do Diário Ilustrado, que era feito por intelectuais e profes¬sores universitários. O entusias¬mo criou-se e só pensava qual a melhor forma de obter uma boa fotografia. Por norma as fotogra¬fias destes eventos eram todas semelhantes, eram apenas ros¬tos com gestos, mas sentiu que tinha de fazer algo diferente. Foi assim que deixou correr a entre¬vista, tirando fotografias, para depois fazer algumas propostas. Aproveitou o facto de Ferreira de Castro fumar para utilizar o fumo e chegou a fotografar apenas as mãos com um manuscrito. Era uma abordagem diferente do habitual, o que levou a que surgissem elogios do Director, que assumiu o gosto por aquele tipo de visão, passando a ser o fotógrafo oficial. Este tipo de suplemento permitiu-lhe conhecer e criar amizades com as principais referências da cultura portuguesa, como escritores, pintores e escultores. Apesar da euforia nem tudo eram rosas, pois a Censura não permitia que saísse tudo o que pretendia. Mas havia mais, o ambiente com os outros fotógrafos não era o melhor, ficando para ele os trabalhos mais complicados. Esta relação criou erosão e acabou por optar sair, indo posteriormente para o Século, que ainda não era o Século Ilustrado e só o passou a ser com a chegada do Nélson de Barros, que apostou na cultura e em reportagens sobre o Povo. Numa dessas reportagens fotografou uma menina que viu na berma da estrada, estava Trás-os-Montes e parou de imediato o carro, mas como havia pouca luz, era fim de tarde e havia uma grande neblina, apenas se focou nos olhos, pois se utilizasse o flash iria estragar a fotografia. A película foi incluída na reporta¬gem sobre esta zona do País e gerou uma carta de alguém que queria saber quem era esta crian¬ça. Foi então que o redactor que o acompanhava, o Roby Amorim que era bastante hábil, fez de tudo para descobrir quem era, enviando cartas para os párocos a fim de descobrir o paradeiro. A pessoa que tinha enviado a carta foi ao encontro da menina, que vivia com mais 10 irmãos e adop¬tou-a, levando-a para Luanda, onde acabou por casar com um filho seu. São situações como esta, em que as suas fotografias influenciam positivamente a vida das pessoas fotografadas, que o sensibilizam, mais que qual¬quer prémio. Foram excelentes momentos, onde percorreu o País todo, conhecendo-o, além de ter uma liberdade artística que lhe agradava.
A PIDE
Foi aí que tudo começou quan¬do estava no Século Ilustrado, tinha uma colega fotógrafa, a Beatriz Ferreira, que colaborava com a PIDE. Não foi de estra¬nhar que certo dia, às seis da manhã, o foram buscar a casa e o levaram para a Rua António Maria Cardoso. O medo acercou-se dele, apesar de conhecer alguns dos inspectores, porque Lisboa era uma aldeia e cruzavam-se todos na Brasileira, mas o susto sustentava-se no conhecimento de casos em que depois da detenção ficavam anos em cativeiro. Tinha noção de que havia motivos para ser acusado, mas nunca tinha sido apanhado em flagrante, pois tirava as fotografias das manifestações de estudantes e das cargas policiais e mudava imediatamente de rolo, sendo apenas confiscado o rolo seguinte. Mas não sabia qual era a acusação. Estar detido foi algo que o marcou, a privação da liberdade é algo que só se sente quando se vive. Já não conseguia olhar para as grades, virando-se para a parede branca que, duran¬te bastante tempo, sempre que olhava para uma sentia o trauma de ter estado dentro de uma cela. Quando foi interrogado, o célebre inspector Mortágua, a quem anos mais tarde fotografou, era muito incisivo no interrogatório e era difícil não cair. Foi aí que soube que a acusação tinha a ver com as fotografias que enviava para o estrangeiro, que davam má imagem de Portugal. Além disso era muito premiado nos países de leste, apesar de também o ser noutras nações, com menos volume, é certo. Quando o ques¬tionavam sobre o porquê de não fotografar paisagens, que tínhamos muitas e tão belas, retorquiu que gostava de pessoas e eram elas que o inspiravam. Era o caso da mulher da Nazaré, que ganhou mais de 20 medalhas de ouro, pelo mundo fora, desde a Ásia, à América e, naturalmente na Europa, em que retratava uma senhora a puxar as redes de pesca, com idade bastante avançada, porque necessitava para sobreviver. Essa injustiça sempre o tocou. O interrogatório durou até tarde e, já de noite, veio um indivíduo, com uma máquina de barbear, que lhe entregou dizendo: «é para se barbear, não queremos que ninguém saia daqui com mau aspecto». Era o fim desta sequela. A verdade é que durante dois anos deixou de enviar fotos para o estrangei¬ro. Só passado muitos anos se dirigiu à Torre do Tombo para saber quem o denunciou e ficou surpreso. Alguns eram-lhe muito próximos e seus confidentes.
A ditadura
A ditadura sempre o deixou triste e frustrado. Como viajava com frequência, fruto do trabalho e, essencialmente, dos prémios que ia ganhando por esse mundo fora, tinha noção do que era a liberdade. E era esse contraste que o entristecia, pois conhecia a diferença. Vivia incomodado por não poder falar e como revoltado que é não podia ficar indiferente.
25 de Abril
O 25 de Abril foi uma data mar¬cante para o País, como é do conhecimento geral, e estan¬do Eduardo Gageiro no Século Ilustrado não poderia deixar de estar presente. Chegou ao Terreiro do Paço e as ruas esta¬vam todas bloqueadas por solda-dos que tinham ordens expressas para não deixar passar ninguém. Entusiasmado e destemido, mas também nervoso, consciente que algo de novo se ia passar, pede para falar com o Comandante, de quem disse que era amigo pes¬soal, apesar de não o conhecer de lado algum. É assim que é levado até Salgueiro Maia a quem se identifica, mas a apresentação era escusada, pois a fama pre¬cedia-o e o Capitão de Abril já o conhecia, pois era leitor assíduo do Século, autorizando-o a andar sempre com ele. Foi assim que obteve as fotografias mais mar¬cantes daquela manhã, até por-que os outros fotógrafos estavam impedidos de passar e cheios de medo. Vários são os registos marcantes, como o de Salgueiro Maia a morder o lábio, que o fez para não chorar, no momento em que o Major Pato Anselmo deu ordem para abrir fogo, por três vezes, sobre Salgueiro Maia que, segundo Eduardo Gageiro, o soldado a quem incumbia essa tarefa só não o fez porque do outro lado estava o Manuel, um amigo deste. A prisão de Pato Anselmo também ficou registada, assim como outras histórias do momento.
Fotógrafo de pessoas
É assim que se assume, um fotógrafo de pessoas e não de paisagens. Tudo começou em Sacavém, onde assistia ao drama do quotidiano e às injus-tiças sociais, que não se esfu¬maram com o 25 de Abril, pois ainda hoje são evidentes. Refere o número da Cáritas Portuguesa, que há pouco tempo referiu que dois milhões e meio de portugue¬ses vivem no limiar da pobreza. As assimetrias sociais preocu¬pam-no e não é uma questão política, pois assume a sua neu¬tralidade nesta área, defendendo que não é filiado em nenhum partido político. Também o preto-e-branco o seduz, pois torna as fotografias mais reais, tensas e fortes. Quando fotografa torna-se um bicho, isola-se e não fala com ninguém. Não gosta de estar em grupo e só sai quando o evento termina, foi assim que conseguiu a célebre fotografia em que o caixão de Salazar é fechado.
Os Prémios
É o único fotógrafo Comendador, mas isso não é o mais relevante. Fala com maior ternura da expo¬sição da Universidade de Praga ou do Museu de Arte Mundial de Pequim, onde foi distinguido com três prémios, o da secção de trabalho, o Prémio Especial do Júri e o melhor conjunto de fotografias a preto-e-branco. Concorreram 35 mil fotografias! Posteriormente foi convidado para fazer uma exposição auto-biográfica no mesmo Museu, a sua coroa de glória.
Saúde
Um linfoma nos pulmões, com muitos gânglios colocou-o entre a vida e a morte, muitas vezes mais perto da morte. Durante seis meses recorreu a um tratamento de choque e as perspectivas não eram risonhas. É nesta altura, em que a doença o afecta de forma violenta que decide ir a Pequim, para a sua exposição no Museu de Arte Mundial de Pequim. Médicos e família não o aconselham a ir, devido ao estado debilitado em que se encontra, mas decide viajar. Se morrer morre feliz e é então que fica deslumbra¬do quando chega ao Museu em Pequim e sente que valeu a pena. Durante o processo de cura começa a preparar um livro. As fotografias escolhidas são em sépia e tristes, com muito isolamento à mistura, reflectindo o seu estado psico¬lógico. E é já no fim do livro que recebe a melhor notícia que podia ouvir naquele momento, está curado. Uma boa nova transmitida pela filha, mas que não o leva a alterar o livro, apenas a incluir três fotografias, as últimas, que são de esperança, que há luz ao fundo do túnel. A obra chama-se “Silêncios”.
Política
O tema não é o que mais simpatia lhe recolhe, porque apesar de ter vivido o antes, o próprio 25 de Abril e o depois não sente que o País esteja no caminho certo. O acesso livre à Educação e à Saúde criaram-lhe esperança, mas a esmagadora maioria dos políticos desilu¬dem-no. Só uma pequena percentagem tenta fazer algo por Portugal, num espíri¬to altruísta e com carisma. Os restantes são “frangos de aviário”, como o próprio define, em que os interesses pessoais são os únicos que interessam. Apesar de não estar filiado em nenhum partido, não esconde a admiração por alguns políticos, alguns amigos pes¬soais como o actual primeiro-ministro António Costa, que conhece desde que este tinha 10 anos. Foi amigo do pai, Orlando Costa e colega da mãe, Maria Antónia Palla, no Século, assumindo a boa formação intelectual e moral do ex-Presidente do município de Lisboa. Também Álvaro Cunhal e o economista Silva Lopes são alguns dos políticos que aprecia.
O Concelho
Desiludido com o anterior executivo e com algumas promessas não cumpridas, o que mais o magoa foi a alienação da zona do Parque das Nações afecta a Loures para Lisboa. Mas não só os polí¬ticos são os responsáveis, também as pessoas, nomeadamente os sacavenen¬ses, são responsáveis, pela falta de inte¬resse que têm em geral. Desde a política à cultura a participação é muito curta e isso entristece-o. Quando é chamado para intervir costuma sempre citar uma frase, de um dos muitos livros que leu, que o marcou profundamente “tu podes, assim tu queiras”.
Pedro Santos Pereira