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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens & Patrimónios

Um médico de Loures homenageado

10 de março de 2017
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O nome de António Carvalho de Figueiredo possivelmente não será desconhecido aos leitores desta crónica, pois vários são os indícios que, na cidade de Loures, evocam a sua memória e a história da sua vida ligada ao concelho e suas gentes. Este lourense tem um busto, uma avenida e uma escola com o seu nome, o que atesta bem que não ficou no esquecimento. Na verdade, além de médico, António Carvalho de Figueiredo foi também bacteriologista reconhecido e respeitado no seu tempo, na medida em que contribuiu para a investigação sobre insetos, mais especificamente mosquitos causadores da malária e de outras doenças, e também se interessou pelo estudo da doença do sono. Neste domínio publicou na revista “A Medicina Contemporânea”, em 1904, os resultados da sua investigação sobre mosquitos, onde provou a existência do Anopheles bifurcatus em Portugal e onde propôs que a variedade do A. Bifurcatus, que identificou, passasse a denominar-se Portucaliensis, pretensão que foi aceite na comunidade científica. Assim, para além da sua atividade de médico municipal e de subdelegado de saúde dedicava-se à investigação científica segundo os princípios da metodologia pasteuriana, no pequeno laboratório que montou na sua casa do Barro. As teses dos conceituados bacteriologistas Luís Câmara Pestana e de António Francisco Azevedo fazem referência aos seus trabalhos, embora talvez seja este aspeto da sua vida aquele que é menos conhecido do público. Podemos afirmar que foi um homem do seu tempo, e que as suas preocupações e interesses no campo da saúde estavam em sintonia com debates e problemas que, na transição do século XIX para o XX, existiam na sociedade portuguesa e europeia, no sentido de se reconfigurarem novas práticas de saúde pública e de se codificarem, igualmente, novas normas adequadas a essa necessidade.

António Carvalho de Figueiredo nasceu no Barro, lugar deste concelho, em 1853; aí viveu e veio a morrer em 1917. Formou-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1879 e foi o primeiro subdelegado de saúde do concelho de Loures, posto que manteve até ao seu falecimento. Devido ao seu contributo à medicina e à sociedade, enquanto médico e republicano, durante o ano de 2017 a Câmara Municipal de Loures, prestando-lhe homenagem, irá promover um vasto e diversificado programa evocativo da sua vida e obra. Tal programa é abrangente, e, dele destaco três eventos: o Simpósio “Medicina, Investigação e Sociedade na Transição para o Século XX” que se realizará no próximo dia 18 de março, e as duas exposições que irão estar patentes, uma no Museu de Cerâmica de Sacavém e outra no Edifício 4 de Outubro, intituladas, respetivamente, “Higiene e Saúde em Loures à época de António Carvalho de Figueiredo. Quotidianos Públicos e Privados, 1886-1938” e “Cem anos após o Desaparecimento … António Carvalho de Figueiredo (1853-1917): o Homem e a Obra”. Aconselho, portanto, todos os interessados a estarem atentos à agenda municipal online, onde o programa completo poderá ser consultado.

Durante o século XIX assistiu-se em Portugal à discussão politica sobre questões relacionadas com a saúde pública, o que irá levar à criação de novos conceitos e práticas nesse domínio, onde as questões sanitárias e de prevenção são consideradas primordiais e cada vez mais uma competência governativa, ou seja, uma ação do foro político. Em 1837 foi criado o Conselho de Saúde Pública que detinha uma certa autonomia em relação ao poder político, mas alguns anos mais tarde, em 1868, considerou-se que a questão da saúde pública era demasiado importante para estar entregue apenas a médicos. Assim, em 1868 as funções deliberativas e executivas passaram para a administração pública, ou seja, para o governo central, através da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino e suas extensões, a saber, governos civis e administrações de concelho. Assim, portanto, o poder médico, através desta reforma do domínio da saúde pública, ficou subordinado ao poder político.
Um novo conceito de saúde e higiene públicas subjaz a estas alterações organizativas e de mentalidade. O corpo social, isto é, o conjunto da população, passa a estar sob a progressiva alçada do Estado, que, assumindo uma nova forma de controlo, se encarrega de prevenir o aparecimento ou a difusão por contágio de patologias que afetem o corpo de cada um(a) e se estendam, perigosamente, ao todo desse corpo social. Para tal, é necessário criar novos serviços de vigilância, isolamento, tratamento, etc., e definir para cada um deles um campo de ação, sustentado em códigos de intervenção médico-jurídica. Toda uma nova disciplina se estende assim sobre o estado físico dos sujeitos, impondo regras e comportamentos e estabelecendo uma nova codificação da doença e da saúde. Ao longo do século XIX e principalmente na transição para o novo século, as principais preocupações que configuravam o campo da saúde pública visam, na verdade, disciplinar o corpo social, o que o filósofo e historiador francês Michel Foucault definiu como nascimento do que designou a biopolítica. Quer dizer, uma política que se amplia nas suas atribuições, controlando cada indivíduo na sua corporalidade, desde que nasce até que morre.
O autor agora homenageado insere-se nesse vasto movimento da extensão da medicina à vida, extensão essa regulada por leis e enquadrada em instituições especializadas (hospitais, etc.), onde a biologia dos seres humanos é objeto de toda uma política pública que antes não existia.

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