Anuncie connosco
Pub
Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A simbologia da procissão, um património imaterial

1 de outubro de 2016
Partilhar

Será precisamente no início de outubro que Loures rece- berá uma vez mais o Círio de Nossa Senhora do Cabo, manifestação religiosa que percorre várias paróquias da região estremenha e que remonta a uma tradição secular. Com efeito, o culto prestado a Nossa Senhora do Cabo Espichel inscreve-se numa manifestação particular, o círio, que significa uma deslocação coletiva a um santuário, em pagamento de uma promessa feita por uma comunidade.

A sua designação deriva do fato destas romarias a lugares pré-determinados, a santuários afastados das povoações, implicarem deslocações de vários quilómetros, e dos romeiros levarem consigo, durante o trajeto, grandes velas de cera, os círios. Expressa também uma relação mútua de dádiva entre a santa e os crentes, entre uma comunidade e a santidade, em troca de determinada graça. Deste modo, uma comunidade assume o seu compromisso baseado numa promessa coletiva de deslocação ao santuário.

Muitas dessas promessas estão associadas ao pedido de proteção contra vários flagelos naturais que podem afetar a agricultura, mas, no caso do Círio dos Saloios, a Nossa Senhora do Cabo (como acontece aqui em Loures) o voto foi estabelecido com o propósito de afastar uma epidemia de peste que terá assolado a região de Lisboa. Várias são as lendas que explicam o aparecimento da imagem da Virgem num lugar relativamente tão remoto como o Cabo Espichel, narrativas que pretendem justificar ou legitimar a origem do santuário mariano.

Uma das mais antigas refere-se a uma primeira manifestação de presença divina no Cabo Espichel através de fenómenos sobre-naturais conforme nos atesta J. Raposo Botelho: “Conta a lenda que na venturosa noite, em que a Virgem Mãe deu à luz o Menino Deus, a Serra da Arrábida foi coberta por um clarão extraordinário, que iluminou por completo o Promontório Barbárico (Cabo Espichel). Viu-se então uma enorme nuvem, cheia de res- plendores, a qual, como se fora o Sol no seu declínio, foi cair nas águas revoltas do oceano (...)”.

O mesmo autor descreve-nos outra lenda, desta vez relacionada com mercadores que, passando ao largo do referido cabo, se debatiam com uma grande tempestade, da qual só se salvaram devido à proteção divina: “Pelo ano de 1215, no tempo do rei de Portugal D. Afonso II, certo mercador inglês veio traficar a Lisboa, e encontrando- se a nau na altura deste porto, junto ao Cabo Espichel, sobreveio uma medonha e horrível tormenta que a todos fez crer irremediavelmente perdidos (...). Entre a tripulação do navio, em que todos professavam a religião católica, vinha um padre Agostinho, o padre Hildebrant, pessoa de grandes virtudes, que se fazia acompanhar por uma pequena imagem da Virgem Santa mediante a qual operava grandes prodígios.

O tempo não amainava, antes, cada vez mais recrudescia a fúria dos elementos, e o bom frade, tocado de fé, lembrou-se de ir buscar ao camarote a protetora imagem. A tripulação ajoelhou na coberta em volta do padre, que mudo de espanto afirmava o desaparecimento da imagem. E aque- les homens rudes de espanto ergueram as suas preces ao céu. De repente, idêntica claridade, como a que resplandecera na noite do nascimento do reden- tor, alumiou o espaço em que navegavam, e abrandada a fúria do mar, logo puderam fundear em lugar seguro da costa. (...) Na manhã seguinte, aplacada a tempestade, trepando a custo a escarpa do cabo talhada a pique, até ao cimo, donde tinha partido a luz salvadora, foram encontrar, metida numa das cavernas do acidentado terreno, a preciosa imagem de Nossa Senhora, que desaparecera da nau.

Maravilhados e agradecidos por tão surpreendente milagre, foi resolvido não a tirar daquele local e, com licença do bispo de Lisboa e a expensas de toda a equipagem, fizeram erguer uma tosca ermidinha, para perpetuar aos vindouros a sua gratidão à mãe de Deus, ficando o padre Hildebrant por seu capelão.”

Outras narrativas atribuem a des- coberta da imagem a pessoas da região, nomeadamente a um ancião de Alcabideche e a uma mulher idosa da Caparica, ambos provenientes de povoações que de certo modo representam as duas margens do Tejo e regiões onde o culto a Nossa Senhora do Cabo atingiu uma forte expres- são popular: “Por andar de 1410, um saloio, residente em Alcabideche, povoação situada no sopé da vertente meridional da Serra de Sintra, vira uma bri- lhante estrela, lá longe, sobre o Cabo de Espichel, lugar revelado em sonhos por Nossa Senhora, que o avisara, acharia a sua ima- gem, ali deixada desde séculos numa lapa, e o advertia para os devotos lhe prestassem culto. (...) por alturas da Caparica, e se sentisse fatigado, pediu poisada a uma mulher dali, referindo-lhe, à lareira, o sonho que tivera.“

Ambos se dirigiram para o local, onde encontraram a imagem, logo ali improvisando uma ermida de alecrim. Todas estas explicações de tra- dição popular procuram dar sig- nificado quer ao lugar, o Cabo Espichel, quer à presença da imagem sagrada, e, por conse- guinte, ao culto a ela presta- do. Sabemos que nos inícios do século XV já estava edificada (ou até reedificada) a pequena cape- la de Santa Maria do Cabo, atual- mente conhecida por Ermida da Memória, sítio de grandes roma- rias. As peregrinações populares foram crescendo e em 1430 já tinham aderido trinta freguesias da região saloia - dos atuais con- celhos de Lisboa, Sintra, Cascais, Mafra, Loures, Odivelas e Oeiras - que entre si instituíram um “giro” anual. Os festejos teriam lugar no primeiro domingo após a quinta feira de Ascensão, dia em que a bandeira da Nossa Senhora do Cabo seria entregue ao pároco e aos mordomos da freguesia que festejaria a Senhora no ano seguinte.

A passagem do teste- munho era assim efetuada no Cabo Espichel. Para a consolidação da celebra- ção desta festividade muito con- tribuiu a instituição da confraria da Nossa Senhora do Cabo, cuja carta de compromisso é de 1672. Anos mais tarde, em 1751, o ritual da bandeira foi substituído por uma imagem, feita à seme- lhança da original, réplica que a partir dessa altura começou a acompanhar os círios. Dado o número de freguesias envolvi- das, o Círio de Nossa Senhora do Cabo realizava um longo calendário de rotatividade.

No início do século XVIII retiraram-se quatro freguesias, pelo que o giro saloio é desde então constituído por apenas 26 locali- dades: S. Vicente de Alcabideche, Linda-a-Velha (desde 2012, em substituição de S. Romão de Carnaxide), S. Julião do Tojal, S. Pedro de Penaferrim, Na Sra da Misericórdia de Belas, Sta Maria de Lourdes, S. Lourenço de Carnide, S. Pedro de Barcarena, S. Pedro de Lousa, Sto Antão do Tojal, Na Sra da Purificação de Oeiras, Na Sra do Amparo de Benfica, S. Domingos de Rana, S. João das Lampas, Na Sra da Purificação de Montelavar, Na Sra de Belém de Rio de Mouro, Na Sra da Ajuda de Belém, Ascensão e Ressurreição de Cascais, Santíssimo Nome de Jesus de Odivelas, S. Martinho de Sintra, S. Pedro de Almargem do Bispo, Sto Estêvão das Galés, Na Sra da Conceição da Igreja Nova, S. João Degolado da Terrugem, S. Saturnino de Fanhões, Sta Maria e S. Miguel de Sintra. No final do século XIX a diminuição do número de romeiros ao Cabo levou à necessidade de se retificar o Compromisso, passando os festeiros a levar a imagem peregrina de freguesia em freguesia sem deslocação ao santuário, com exceção da fre- guesia que completasse o “giro”. Ou seja, no final de cada ciclo, a última freguesia do “giro” entrega a imagem à primeira no Cabo Espichel, como no ritual primitivo. Assim, à de freguesia de Loures só voltará de novo daqui a 26 anos...

Última edição

Opinião