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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A inscrição romana da povoação do Barro

6 de janeiro de 2020
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Na época romana, o atual território do município de Loures fazia parte de uma vasta área sob a administração da cidade de Lisboa, ou seja, fazia parte do municipium de Olisipo.

Vários fatores terão contribuído para o seu povoamento e desenvolvimento: a potencialidade agrícola dos solos; uma rede hidrográfica importante da qual se destacaria o rio Trancão que garantia a navegabilidade da várzea de Loures e o escoamento dos produtos agrícolas através do rio Tejo; e a existência de uma rede viária cujos principais eixos integravam os mais importantes itinerários da faixa atlântica da Prouincia Lusitania.

Com efeito, a presença romana nesta região está bem documentada, e são muitos os vestígios arqueológicos que o confirmam; entre eles irei destacar, nesta crónica, a inscrição funerária do Barro (povoação da freguesia de Loures), um dos testemunhos materiais da prática epigráfica introduzida pelos romanos.

Esta inscrição estava embutida na parede de uma pequena habitação do Barro, cuja demolição implicou a remoção da epigrafe, estando esta atualmente inserida nas coleções do Museu Municipal de Loures (Quinta do Conventinho). Trata-se de um monólito paralelepipédico, de lioz, que apresenta a seguinte inscrição funerária, dedicada pelos pais à filha: “Aos deuses Manes de Apónia Juliana, filha de Públio. Públio Apónio Juliano e Apónia Nicópolis à filha”.

O monumento epigráfico está datado de finais do século II ou inícios do III d. C., uma vez que começa com a consagração aos deuses Manes. Segundo o investigador Luís Fernandes, estamos perante uma inscrição que nos informa que a defunta, Aponia Iuliana, seria possivelmente uma mulher de condição livre, enquanto que os pais seriam dois libertos do mesmo patrono, apresentando a mãe um cognomen de origem grega.

Os manes, também chamados Di Manes (Di significa “deuses”), na mitologia romana, eram as “almas” dos entes queridos falecidos. O culto dos mortos tinha um importante papel na religião, incluindo a sua dimensão doméstica; havia a obrigação familiar de enterrar os defuntos, garantindo a realização de um conjunto de rituais, uma vez que os mortos se inseriam numa categoria intermédia entre os homens e os deuses.

Assim, os mortos eram considerados uma coletividade divina a ser venerada como conjunto de ancestrais. Os rituais funerários tinham como propósito não só pacificar a “alma” inquietante do defunto, bem como expressar publicamente a tristeza da família, publicitar socialmente a perda e, deste modo, restaurar o equilíbrio e a pureza afetados pela morte. No entanto, os cuidados com os mortos não terminavam com o fim do luto.

No próprio lararium (altar, sítio sagrado da casa romana onde se faziam as oferendas aos deuses) os antepassados (Manes) eram honrados através dessas oferendas. Ao longo do ano a família e amigos efetuavam um conjunto de festins sobre os túmulos dos seus antepassados, nomeadamente nos dias de aniversário (dies natalis) ou nos festivais anuais como as Parentalia em fevereiro.

Os festivais para os mortos (seja as Parentalia em fevereiro ou as Lemuria em maio) assumiam um carater essencialmente doméstico uma vez que estavam focados nos ancestrais familiares. Todavia, havia também um elemento público, quando, no primeiro dia das Parentalia, uma virgem vestal realizava os rituais.

Para a realização dos banquetes funerários eram construídas cozinhas em alguns mausoléus, sepulturas das famílias ricas. Em todos esses festins, inclusive o do enterro, uma porção de alimentos era separada para o morto, pois acreditava-se que ele podia, de algum modo, alimentar-se dessas ofertas.

O culto romano aos que partiram, seja público ou privado, tinha um propósito duplo: providenciar que os mortos sobrevivessem na memória de seus parentes, descendentes e amigos; e também procurar assegurar - através da atenção devotada às suas relíquias mortais nas tumbas - conforto, alimentação e renovação perene da vida dos seus espíritos imortais.

Hoje, a história, antropologia e arqueologia da morte ocupam um papel importante nas nossas preocupações e na nossa intenção de compreender o humano e a diversidade das suas crenças, cultos e práticas rituais, uma vez que sabemos que é na morte que a própria ideia de vida (individual e coletiva) mais amplamente se exprime.

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