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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A Ermida de São Roque

2 de fevereiro de 2020
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Esta crónica é dedicada a um lugar que durante quatro séculos foi palco de romarias e de grande devoção popular e que hoje é praticamente desconhecido: a Ermida de São Roque. Este santuário, outrora procurado por muitos fiéis, está implantado no alto de um pequeno outeiro, junto à estrada nacional 115, entre as localidades de São Roque e de Santo Antão do Tojal. Atualmente quase esquecido, como disse, a sua situação contrasta com a de outros tempos… pois foi outrora um sítio muito procurado, ao qual afluíam crentes em busca de cura contra várias doenças contagiosas, nomeadamente a peste.

Em Lisboa, o culto a São Roque terá começado em 1506, quando o rei D. Manuel I tomou a iniciativa de pedir à Senhoria de Veneza algumas das relíquias do santo com o objetivo de garantir a proteção da cidade contra os surtos de peste. Para albergar as mencionadas relíquias e garantir a sua devoção foi erigida na cidade uma ermida, ermida essa que, mais tarde, seria substituída pela atual Igreja de São Roque de Lisboa. De acordo com as “Memórias Paroquias” do século XVIII a ermida da nossa crónica, ou seja, a do concelho de Loures, terá sido a segunda de invocação a São Roque a ser construída no reino de Portugal.

Embora não se saiba a data concreta da obra, após uma visitação realizada em 1586 pelo desembargador Mateus Bernardes, este afirma que a mesma era muito antiga: “Visitando a ermida de São Roque, desta freguesia, achei ser antiquíssima e o povo e romeiros costumarem sempre, em todo o tempo, irem a ela encomendarem-se a Deus e terem as suas novenas na casa que para isso teem junto à dita ermida e mandarem ela dizer suas missas sem haver pessoa alguma que lhes impedisse a serventia nem uso dela, com o dito é por estar em um lugar publico e comum a todos os que a ela agora quiserem ir (…)”.

A encimar o portal principal estava dantes inscrita a data de 1578, o que, segundo certos autores, deverá corresponder não à construção inicial, mas a um momento de reedificação da ermida, o que explica a referência do visitador e ela ser muito antiga. Como é muito comum na tradição popular, a justificação da escolha de um local para a implantação de um templo, lugar de elevada carga simbólica, acarreta narrativas associadas a fenómenos de carácter sobrenatural, indicadores de uma suposta “vontade divina”.

Também aqui a tradição afiança que, num poço próximo do Rio de Galinhas, e, portanto, nas imediações do sítio onde foi erigida a ermida, teria aparecido uma imagem de São Roque, semelhante à do mesmo santo existente em Lisboa. Aquele poço era conotado com águas benfazejas para doenças de pele, especialmente para os males de uma, designada ozagre, a qual afetava as crianças de colo, provocando-lhes o aparecimento de pequenas pústulas na cabeça. Aliás, junto ao dito poço existia, segundo as referidas “Memórias Paroquiais”, uma pia em pedra que servia para dar banho às crianças, havendo até um local para depositar as suas roupas “infetadas”.

A ermida de São Roque, possivelmente edificada nos inícios do século XVI, era o centro de pequeno núcleo religioso que para além dela agregava algumas casas destinadas não só ao ermitão, mas também para albergar romeiros que frequentavam amiúde este local. Existia uma confraria que, juntamente com os párocos e o ermitão, se encarregava de organizar as celebrações do santo. Ocorria a 16 de agosto a grande romaria anual, a qual atraía não só os devotos da freguesia, mas muitos outros vindos de Lisboa e de outras partes do reino, bem como alguns membros da corte. Além desta celebração também se festejava no local a 15 de agosto a da Virgem dos Remédios e, no dia 17 do mesmo mês, o prior de Santo Antão do Tojal e os beneficiados levavam a efeito as cerimónias de devoção a São Diogo de Alcalá.

Agosto era assim o “mês forte” desta ermida, hoje praticamente tombada no olvido, como disse. Data de 1760 a descrição de um outro autor, Felix Dantas Barboza, prior de Santo Antão do Tojal, autor das “Memórias Paroquiais”, texto onde descreve o interior da ermida mencionando que o templo era todo apainelado com pinturas, da autoria do conhecido pintor José da Costa Negreiros, alusivas à vida do santo; aliás, tal pintor era devoto do orago e benfeitor da referida ermida. O altar-mor possuía um retábulo pintado e dourado no qual se veneravam, para além de S. Roque, cuja imagem estava colocada numa tribuna, a Virgem Santíssima, com o título dos Remédios, Santo António, São Sebastião e São Diogo de Alcalá.

A respeito desta última imagem, não resisto a mencionar uma curiosidade: ela era, em 1760, não a original, mas uma oferecida por António Ferreira Leitão e Mello, na altura proprietário da Quinta Nova, e muito devoto deste santo. A mais antiga estava guardada na sacristia, para a proteger de uma prática, de carácter supersticioso, de muitos fiéis, que retiravam esquirolas de madeira da imagem para com elas fazerem chás e outros pretensos remédios destinados ao que acreditavam propiciar a cura de problemas de saúde relacionados com a alimentação.

A ermida de São Roque apresentava, antes da sua ruína no século XX, uma nave simples prolongada por uma pequena capela-mor, um coro alto sob a entrada principal e uma sacristia de reduzida dimensão por detrás da capela-mor. O corpo principal do templo possuía azulejos atribuídos ao século XVII. Por sua vez, a capela-mor era revestida de painéis de azulejos azuis com cenas sagradas: o batismo de Cristo no rio Jordão, à esquerda, e a morte de um santo frade, à direita. Na sacristia existiam azulejos de figura avulsa com os cantos marcados, próprios do século XVIII.

Na frontaria um painel alusivo a São Roque com os seus atributos terá sido, de acordo com uma inscrição no próprio painel, uma oferta de um seu devoto em 1668. Por não ter visitado este sítio recentemente, não posso testemunhar sobre como se encontra o antigo local de romaria. Há notícia de que sofreu danos aquando do terramoto de 1755, o qual afetou tanto a ermida como as casas, mas que prontamente teriam sido recuperadas pelos confrades de Santo Antão e de Lisboa.

O vendaval de 1941, segundo os escritos do Pe. Álvaro Proença, terá sido a causa da derrocada da frontaria e parte das antigas casas ali existentes. Assim foram as (algo tristes) vicissitudes que o tempo causou num local que já conheceu momentos de grande glória e animação popular.

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